DISCOS
A Certain Ratio
Live America 1985
· 13 Jul 2005 · 08:00 ·
A Certain Ratio
Live America 1985
2005
Melodic


Sítios oficiais:
- A Certain Ratio
- Melodic
A Certain Ratio
Live America 1985
2005
Melodic


Sítios oficiais:
- A Certain Ratio
- Melodic
Todos os patinhos sabem bem nadar, mas alguns afogam-se no esquecimento assim que o hipócrita hype lhes vira as costas. Os tempos revelam-se propícios à venda de banha de cobra. Alguém de ar suspeito e barba de dois dias percorre o itinerário mediático a tentar impingir gato por lebre. Porém, quando um burro revela mestria na arte de tocar cowbell, os outros baixam as orelhas. Sim, a história repete-se. As fábulas são intemporais. Mas, e de acordo com o testemunho revelado em Live America 1985, os verdadeiros animais de palco davam pelo nome de A Certain Ratio.

Apostada na recuperação de relíquias merecedoras de uma segunda vida, a Melodic de Machester inicia em Live America 1985 (editado em 1985 pela Dojo e vendido em cassete nos concertos da banda) uma série de reedições que se esperam tão relevantes quanto esta. Fica bem começar com uma aposta na prata da casa (o colectivo provém de Manchester). A reedição insere-se num crescente revivalismo da instituição A Certain Ratio a favor do qual muito tem contribuído a preferência quase generalizada dos que manipulam as pistas de dança. O opus "Si Firm O Grodo" ainda hoje podia marcar presença num set de Diplo (o DJ que tem levado a favela até aos quatro cantos do mundo). Live America 1985 é maná para arquivistas de ritmo. Quando não se descobrem mais sobras de estúdio ao catálogo, toca de cavar o que se captou à banda em palco. A julgar pela amostra, a obrigatoriedade reconstrutiva do cenário concerto resulta em reformulações com muito mais pinta que a quinta versão de Shack Up obtida em estúdio.

Após significante interregno para reavaliação de estruturas, a banda que um dia Tony Wilson quis ver de khakis (de forma a sugerir ambiguidade sexual) rumou aos Estados Unidos ao lado dos New Order na esperança de revalidar o potencial que os tornara ícones da lendária Factory. Ao que parece, o recrutamento do baterista Donald Johnson foi determinante para a reinvenção comedida dos autores de To each.... Foi ele o principal responsável pela ressurreição daquela alquimia do ritmo que os ACR conduziam por telepatia. Donald fez com que ressurgisse no som da banda o efeito afrodisíaco da excentricidade. A locomotiva voltava a entrar nos carris. Aquela liberdade de movimentos que a quarta ou quinta cerveja concede, é elevada ao quadrado sob a influência da proporção certa de Sextet (cume do período de ouro na Factory), e Live America 1985 recupera essa virtude.

Além de documento resgatado a uma década em que a incógnita convidava à dança, Live America 1985 é um estimulante perfeito de actividade muscular sem nunca ser isométrico entre faixas. O magnetismo do colectivo britânico gosta de brincar às escondidas: ora se encontra à flor da pele (“Schack Up”, o mais bombástico dos sucessos, é prova disso), ora recolhe a um plano esquizofrénico constantemente movediço. A hipnose frenética de "Knife Slits Water" passa bem sem a voz da entretanto desertora Martha Tilson. A contagiante introdução “Sounds Like Something Dirty” reclama para si o beijo salgado que Lena D’Água subornava com um doce. Live America 1985 é puramente "anos 80", mas nunca soa a datado. Ajuda a compreender as motivações (e fundações) que levaram ao Rock Rendez-Vous e aos delírios dos conimbricenses M’As Foice, e isso basta para que seja tido como objecto de estudo obrigatório.

Numa altura em que punks e rude boys andavam de costas voltadas, faltou ao Ratio o certeiro bafo de sorte para estabelecer tréguas entre pulseiras pontiagudas e padrões axadrezados. Se fracassaram em apaziguar rivalidades na altura, hoje colocam em termo de igualdade todos os seus sucedâneos directos ou indirectos. Pois não há Rapture, Radio 4 e muito menos LCD Soundsystem que o valha. A Certain Ratio über alles.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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