DISCOS
Spiritualized
And Nothing Hurt
· 18 Set 2018 · 10:42 ·
Spiritualized
And Nothing Hurt
2018
Bella Union


Sítios oficiais:
- Spiritualized
- Bella Union
Spiritualized
And Nothing Hurt
2018
Bella Union


Sítios oficiais:
- Spiritualized
- Bella Union
Salmos, 95:1.
Mesmo o mais feroz dos ateísmos não consegue ficar indiferente a Jason Pierce. De todos os guitarristas, de todas as vozes, de todos os letristas e de todos os músicos que já passaram por esta terra, incluindo todos aqueles que dedicaram uma carreira a essa coisa abominável chamada "rock cristão", foi ele quem mais próximo esteve de Deus. Um Deus indefinido, não meramente abraâmico; um Deus que é ao mesmo tempo um junkie e um psicólogo; um Deus que fere o coração e que apazigua a alma em medida exacta. Um Deus presente e omnipresente naquele cruzamento de ruído com gospel que é Ladies And Gentleman We Are Floating In Space, um Deus sexual e voraz como o de "She Kissed Me (It Felt Like A Hit)", sonolento e solúvel como em "Medication", transcendental como o de "Out Of Sight"...

E poderíamos ficar aqui a noite toda a falar de Deus, a discutir o que há na teologia e para além dela, mas chegaríamos a uma e à mesma conclusão: a de que Pierce é o Seu maior enviado à Terra. Ninguém mais O conseguiu cantar como ele, seja nos Spiritualized (banda que raras vezes foi menos que uma completa lavagem de todas as nossas maleitas e pecados), seja nos Spacemen 3, quando Deus habitava a ponta de uma agulha e nos fazia caminhar pelo espaço junto do seu filho, ou então descia para junto de nós para nos dizer que até podíamos estar a fazer algumas coisas mal, mas Ele estava ali para nos dar um abraço. Nietzsche pode ter matado Deus, mas Pierce ressuscitou-O e fez Dele algo ainda maior. Fez Dele electricidade, invenção, rock n' roll puro. Fez Dele luz.

Pelo que as notícias de que And Nothing Hurt poderá ser a última missão levada a cabo pelo evangelizador máximo do rock não poderão senão fazer-nos pensar novamente no filósofo alemão: se os Spiritualized morrerem, Deus morrerá com eles. Porque - e isto poderá parecer um óbvio exagero para quem sofre de uma tremenda falta de fé - ninguém o conseguirá superar nesse sentido bíblico. Haverão rockers, haverão bandas maiores, algumas até melhores, que as dele. Mas nenhuma beijará o rosto do Divino ou, melhor dizendo, tecerá esse mesmo rosto em canção como Pierce o fez.

Notícias que entretanto poderão ter sofrido um revés (o músico já disse que esta coisa de And Nothing Hurt ser o último álbum dos Spiritualized pode não ser lá muito bem verdade), mas que ainda assim nos colocam numa gritante e apocalíptica angústia. Como é possível que algo tão belo possa chegar ao fim?, pensamos, e pensamos também no peso da idade, no local exacto onde nos encontrávamos quando, pela primeira vez, o Evangelho Segundo Jason Pierce se entranhou nos nossos ouvidos (e muitas vezes a resposta é: a meio de uma depressão, e em vez das drogas fui salvo por ele).

And Nothing Hurt soa quase como essa primeira vez, sobretudo no tema que o abre, "A Perfect Miracle", quase um pastiche do tema-título de Ladies And Gentlemen We Are Floating In Space: também há um embalo antes do trovão, também há uma declaração de um amor puro e nostálgico, também há vozes a chocar umas contra as outras. Tudo o resto é apenas um imenso mar azul, onde o amor vive quase virgem (e o amor pode ser virgem, ao contrário do corpo), como toda a sequência "I'm Your Man"-"Here It Comes (The Road) Let's Go"-"Let's Dance".

Será preciso chegar a "On The Sunshine", que oferece a salvação numa dose cavalar de cavalo e cavalgada rock furibunda, com o que quer que restasse de "canção" destruído a meio pelo free jazz. É "On The Sunshine" quem nos oferece o maior sinal de que o fim estará para vir:

And in the faded light
All the angels sing
When you reach the ends of all your lines
Then tie a knot and swing

And save your bleedin' soul
Save your bleedin' soul
If youth is wasted on the young
Then wisdom on the old


...Até que "The Morning After", logo após a bonita "Damaged", prova que esse fim não tem necessariamente de ser amargo, percorrendo todas as estradas de todas as Américas dos sonhos ao mesmo tempo que nos narra uma história aterradora sobre o gigantesco esgoto que é o mundo moderno. No fundo, é a canção que Bruce Springsteen, que também consegue colocar alegria no desespero, gostaria de ter escrito - bastava ter fumado uma ganzazita que fosse. Pierce fê-lo por ele e abençoou-nos com este delírio psicadélico final, a porta de saída do mundo da nostalgia rock rumo a um futuro que desconhecemos. Rumo a um prémio para um concurso que não sabíamos ter disputado, a um oceano que não nos disseram que teríamos de navegar. Rumo a um futuro sem Deus - e não menos impressionante por assim ser. A sua memória, como a do(s) amor(es), terá de ficar para sempre. E isso também é um bocadinho Divino.
Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com

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