DISCOS
PJ Harvey
The Hope Six Demolition Project
· 20 Abr 2016 · 10:58 ·
PJ Harvey
The Hope Six Demolition Project
2016
Island


Sítios oficiais:
- PJ Harvey
- Island
PJ Harvey
The Hope Six Demolition Project
2016
Island


Sítios oficiais:
- PJ Harvey
- Island
Harvey Papers.
Na capa de Stories From the City, Stories From the Sea (2000), Polly Jean aparece muito cosmopolita, de óculos escuros, agarrada a uma mala com ar de ser cara e a atravessar uma movimentada rua de Nova Iorque. Esse disco rendeu-lhe o primeiro Mercury Prize. O segundo viria com Let England Shake (2011), o álbum que precedeu este The Hope Six Demolition Project, que não podia ser menos cosmopolita.

Volvida mais de década e meia, o trabalho gráfico, bastante mais críptico, e o ambiente do novo álbum também não podiam ser mais diferentes de Stories.... PJ Harvey escreveu estas canções durante as viagens que fez ao Kosovo, ao Afeganistão e a esse outro cenário de guerra chamado Washington, DC. Nestas digressões quase jornalísticas que duraram cerca de três anos, Harvey fez-se acompanhar pelo fotógrafo e realizador Seamus Murphy.

Escritas as canções, o álbum foi sendo construído às claras como parte de uma instalação artística na Somerset House, em Londres. O público interessado teve a possibilidade de ver PJ Harvey em várias sessões com os produtores Flood e John Parish. Curiosamente, o trabalho de campo menos arriscado acabou por se revelar o mais problemático: acompanhada por Murphy e por um jornalista do Washington Post, Polly Jean visitou um exemplo acabado do plano urbanístico que reconfigurou várias cidades dos Estados Unidos.

O Hope VI, um plano que remonta ao início dos 1990s, visa demolir áreas habitacionais com altas taxas de criminalidade e generosos níveis de degradação para construir infra-estruturas com melhores condições de habitabilidade. Acontece que esses projectos têm afastado os antigos residentes, que foram deixando de conseguir suportar o aumento do custo do parque residencial. Digamos que PJ Harvey não foi simpática na reportagem que fez do que testemunhou e que isso lhe valeu fortes críticas dos políticos e da comunidade locais. Seja como for, a experiência acabou por inspirar o título do álbum e a música que o inaugura, “The Community of Hope”, uma tirada entre o literal e o irónico.

Washington volta a ser mencionada de forma implacável em “River Anacostia”, o rio esquecido de DC, com altos índices de poluição e um criminoso desinvestimento, mas que serviu de pretexto para Harvey incorporar elementos de espiritual negro. E ainda em “Near the Memorials to Vietnam and Lincoln”, uma música estranhamente festiva para evocar uma das guerras mais sangrentas em que a América se meteu e também o Presidente que aboliu a escravatura.

As geografias kosovares e afegãs estão distribuídas ao longo do disco. Há, por exemplo, a história pungente da velha que guarda as chaves dos vizinhos, provavelmente mortos na guerra, na vã esperança de que um dia regressem (em “Chain of Keys”, com belos saxofones barítonos a fazerem lembrar Morphine). Há as duas referências ministeriais, primeiro “The Ministry of Defence” (“kids do the same everywhere/ they’ve sprayed graffiti in Arabic”), depois “The Ministry of Social Affairs” (um sorumbático conto que vagueia entre o blues e o jazz para cantar sobre pessoas amputadas e cadelas grávidas). As duas últimas músicas são duas pequenas relíquias: “The Wheel”, um número rock com palminhas que lança um pouco de luz sobre o disco, apesar de tratar do desaparecimento de crianças (“now you see them, now you don’t”), e “Dollar, Dollar” (o dilacerante relato com pontuações de jazz que conta o encontro com uma criança afegã que lhe pediu esmola).

Em The Hope Six Demolition Project, PJ Harvey faz-se repórter de guerra e faz da música o seu bloco de notas. O álbum não levará certamente a paz nem a estabilidade aos cenários retratados mas sempre faz mais do que os jornalistas de secretária que se limitam a traduzir os takes das agências noticiosas que efectivamente estão no terreno.
Hélder Gomes
hefgomes@gmail.com
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