DISCOS
Ben Frost
A U R O R A
· 02 Jun 2014 · 11:39 ·
Ben Frost
A U R O R A
2014
Mute / http://bedroomcommunity.net/


Sítios oficiais:
- Ben Frost
- Mute
Ben Frost
A U R O R A
2014
Mute / http://bedroomcommunity.net/


Sítios oficiais:
- Ben Frost
- Mute
A “suspensão da descrença”.
É um dos maiores desafios da música “ambiental”, o nível de submersão da consciência de cada ouvinte numa viagem espácio-temporal indeterminada, mais ou menos extensa, sem origem nem destino. Ou seja, o nível de profundidade da “suspensão da descrença” (no inglês original: “suspension of disbelief”, latência “hitchcockiana”). Ou suspensão do cepticismo, ou cinismo, ora há sempre algo que se perde na tradução.

Quanto mais superficial, mais soa a “música de elevador”, ou “muzak”. Aquelas trilhas sonoras inócuas que escutamos – quase sem reparar – nos elevadores de hotéis urbanos, nos terminais de aeroportos, nas salas de espera dos consultórios de médicos dentistas.

Mas também há toda uma arte inerente às melhores produções de “muzak”: a difícil arte da presença não-intrusiva, da neutralidade, tal como uma qualquer peça de mobiliário ou apontamento decorativo que compõem o “ambiente” fluído, sem arestas, desses “não-lugares” (adaptando o conceito de Marc Augé). Uma arte minimalista – menos é mais – que explora a plasticidade do silêncio. Brian Eno, por exemplo, domina-a na perfeição em Ambient 1: Music for Airports (Polydor, 1978), entre outros álbuns essenciais.

Importa ressalvar, no entanto, a complexidade da música de Eno, mais conceptual do que propriamente “ambiental”. Aliás, Eno acabou por desconstruir os arquétipos da “muzak” e extravasou quase todas as fronteiras artísticas em que foi sendo compartimentado ao longo de um percurso criativo de mais de quatro décadas.

O mesmo se pode aplicar ao neófito Ben Frost, apesar das diferenças substanciais de escala e contexto. Ao passo que Eno se dedicou a explorar as superfícies polidas, a geometria simétrica dos “não-lugares”, por sua vez Frost escava mais fundo no subconsciente em busca de altos e baixos-relevos de figuras mitológicas que habitam a alegoria dos sonhos-pesadelos. Partilham uma base comum “ambiental”, mas desconstroem-na à sua maneira – Eno subtilmente, Frost violentamente –, desenvolvem conceitos distintos e resistem ambos às catalogações simplistas: é tão redutor dizer que Eno produz “música ambiental” como limitar Frost às convenções da “música electrónica” contemporânea.

Nas esculturas sonoras de Frost – um australiano radicado na Islândia – sobressai uma dimensão cinematográfica que aprofunda a “suspensão da descrença” até um nível quase hipnótico. Entre os álbuns By the Throat (2009) e A U R O R A (2014), porém, há uma espécie de metamorfose: as instrumentalizações cedem o protagonismo aos sintetizadores, a narrativa revela-se mais disruptiva, as camadas sonoras colidem entre si (como placas tectónicas) e a submersão do ouvinte torna-se intermitente e atribulada.

O resultado é irregular mas tão ou mais estimulante. Frost transporta o ouvinte através de uma sinuosa deambulação por entre abismos sensoriais, ora atraído ora repelido por forças antagónicas (o deserto da Austrália e o gelo da Islândia?) que formam um equilíbrio instável e particularmente difícil de descrever. Películas queimadas de ficção científica. Contos tenebrosos de Edgar Allan Poe. Tecnologia “orwelliana”. Distopias de selectividade genética (“Venter”, na senda de Craig Venter). E os instantes sublimes, em crescendo, da faixa “Secant”, capaz de iluminar as demais fendas de um álbum complexo que implica poder de choque e versatilidade.
Gustavo Sampaio
gsampaio@hotmail.com
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