DISCOS
Capicua
Sereia Louca
· 02 Mai 2014 · 23:08 ·
Capicua
Sereia Louca
2014
Nortesul


Sítios oficiais:
- Capicua
- Nortesul
Capicua
Sereia Louca
2014
Nortesul


Sítios oficiais:
- Capicua
- Nortesul
O caminho faz-se rimando.
Recordemos a célebre frase de Chuck D: ”O hip hop é a CNN do ghetto”. Desde então, temáticas a parte, desde os NWA a Kendrick Lamar, muitos tem tentado uma aproximação semelhante, granjeando muitos fãs que nunca puseram os pés em Compton ou no Bronx. Em Portugal, esse caminho tem sido traçado por nomes como Chullage, Halloween ou Valete, com as devidas adaptações a situação local. O hiphop, afinal, sempre foi uma mistura de falar daquilo que se sabe, com aquilo que se aspira a ser, recorrendo a metáforas, alegorias, auto-engrandecimento, e talento para escrever rimas. De entre os seus milhões de fãs espalhados pelo mundo, as razoes para se gostar deste ou daquele artista variam como acontece com todos os géneros musicais. Mas, sendo assim, qual a razão pela qual Capicua consegue amealhar fãs em zonas raramente penetradas pelo hiphop? Atrevo-me a dizer que “descobriu” um nicho muito pouco visitado nas letras que escreve. Olhe-se para “Casa de Campo”, já presente no disco de estreia, e aqui com novos arranjos. Não conhecemos alguém assim, para quem as coisas boas da vida são o cheiro do pão quente, a casa com amigos a entrar e a sair, doces e sumos?

Podia-se pensar “Lá vem mais uma dar lições de moral sobre o materialismo”. Estarão errados. Capicua tem o seu mundo, e não precisa de dar lições sobre outros. Pode, isso sim, observá-los, como faz em “A Mulher do Cacilheiro”, espécie de tributo a mulheres cujo esforço e trabalho a sociedade pouco ou nada valoriza. Já onde no disco anterior existia “Casa no Campo”, aqui existe “Vayorken”, efervescente recordação da infância e brincadeira com a palavra “Nova York”. De onde vem o hiphop. O hiphop que, com as canções de Zeca Afonso e Sérgio Godinho que o seu pai lhe mostrava/cantava, terá representado para Capicua o que os Beatles representavam para a Mafalda de Quino. Comer gelados, fechar amigas na arrecadação, o primeiro beijo no infantário, a família, está tudo nessa cancao. Experimente-se “Mao Pesada”, com a óptima participação de M7, uma ode a feminilidade nortenha (”Porte de mulher do norte, forte, ar de respeito”). É o seu “Straight Outta Compton”. Ou o sussurro do refrão da magnífica “Sereia Louca”, a sua “A Noite Passada”, em que, ao invés de abrir a janela e voar, a sereia é ”a louca que vai gritar, chorar, bramir, esbracejar, tentar até conseguir”.

Capicua é uma MC que mistura a autoridade de quem confia em absoluto na arte que escolheu para si, com a vulnerabilidade que exibe nas suas letras. Não se trata dos flows desvairados de um El-P, ou da sobrecarga de palavras de um Aesop Rock. Trata-se, tão somente, de saber bater com o pé no chão, e fazer com que a sala a ouça, como alguém que faz um discurso numa festa para amigos chegados, e cativa a atenção durante esses minutos. Os convidados, diga-se, foram optimamente escolhidos. Gisela João, entristecida mas resoluta, em “Soldadinho”, é um bom exemplo. Ou os They’re Heading West, nas duas últimas músicas do segundo disco, sobretudo os novos arranjos da piéce de resistance “Medo do Medo”. A única parte que dispensaria seriam os pouquíssimos momentos em que Mistah Isaac canta. Há algo de Jack Johnson aí. Coisas de somenos. ”Sereia Louca” é um disco que desbrava caminhos, e coloca setas no chão para que outros desbravem novos por si próprios. É mais uma prova que o hiphop não precisa ter limites. É a reafirmação de um talento que trouxe a montanha até si, em vez de tentar o contrário. A casa já está construída. Vai um biscoito caseiro?
Nuno Proença
nunoproenca@gmail.com
RELACIONADO / Capicua