DISCOS
Paolo Fresu
Kind of Porgy & Bess
· 13 Dez 2003 · 08:00 ·
Paolo Fresu
Kind of Porgy & Bess
2002
BMG France
Paolo Fresu
Kind of Porgy & Bess
2002
BMG France
Um dia, num zapping televisivo, no canal de música Mezzo, vi o final de um concerto dum quinteto multi-étnico que tocava temas de George Gershwin, mais propriamente da ópera Porgy & Bess, um dos expoentes máximos da obra deste importante compositor americano do século XX. Vim a saber, momentos mais tarde, que esta era uma banda liderada pelo trompetista italiano Paolo Fresu. Alguns dias depois, encontrei o disco que dava o mote para esse concerto e, como é claro, comprei-o. Um disco ecléctico, tal como a própria ópera, que é um verdadeiro 'melting pot', facto que teria agradado certamente ao próprio Gershwin, não só pela variedade dos registos sonoros, mas também pelas diferentes origens dos próprios membros da banda. Afinal, a multiplicidade de culturas é a essência do Porgy & Bess, como expôs Todd Duncan, o primeiro actor a fazer de Porgy, que na audição cantou para Gershwin uma ária de um compositor italiano obscuro, "Imagine a Negro, auditioning for a Jew, singing an old Italian aria."*

O nome do disco pode ser interpretado de duas maneiras diferentes. Por um lado, como uma homenagem a Miles Davis, cujos solos do álbum Kind of Blue servem de inspiração para os solos de Fresu em The Buzzard Song, a faixa de abertura, cuja forma de tocar visível e audivelmente influenciou Fresu e cuja interpretação épica de Porgy & Bess em 1958, com Gil Evans, continua a encantar os ouvidos de muitos fãs de jazz e não só. Por outro lado, como uma referência à originalidade dos arranjos, a esse estilo de tocar livremente temas baseados na obra de Gershwin, sendo que Summertime, por exemplo, apenas mantém a harmonia e algumas frases do tema original, transformando-se num showcase das capacidades vocais do cantor africano Dhafer Youssef. Quando se lê o que Fresu escreveu nas liner notes, percebe-se então que há ainda uma outra interpretação de Porgy & Bess que influenciou Fresu, a de Ella Fitzgerald e Louis Armstrong, de 1957. É difícil fazer um disco a homenagear tantos gigantes da música negra, até porque se pode ver na capa que Paolo Fresu é apenas um italiano branco, magrinho, de rabo-de-cavalo e brinco na orelha. Mas Fresu não está sozinho neste disco. Para além do cantor Dhafer Youssef, que também toca Oud, tem a ajuda de um guitarrista franco-vietnamita futurista muito influenciado pelo rock, Nguyên Lê (que esteve entre nós recentemente a tocar com a Big Band de Gianluigi Trovesi), e um pianista, um baixista e um baterista italianos, Antonello Salis, Furio Di Catri e Roberto Gatto, respectivamente, nomes constantes ao longo da sua obra.

Assim, este disco deambula por influências diferentes, do Jazz (o álbum fecha com uma versão simples de I got plenty o' nuttin, tocada como numa jam session normal) à World Music (aqui presente pela inclusão de Dhafer Youssef), passando pelo Rock Experimental (que tem voz na guitarra de Nguyên Lê), pelos Blues (como é o caso de What You Want Wid Bess?) ou mesmo pelas fases finais da carreira de Miles Davis (que se notam nos efeitos da guitarra de Lê e no baixo de Di Castri). Um disco bonito, muito variado, e acima de tudo com uma nova interpretação da música de Gershwin, directamente relacionada com a origem da própria ópera Porgy & Bess. Paolo Fresu tem uma maneira de tocar trompete e de fazer solos que em muito se assemelha à de Miles Davis nos seus tempos áureos de Birth of the Cool ou de Kind of Blue, podendo até ser confundido, em alguns temas e por breves momentos, com o próprio, especialmente quando utiliza a surdina Harmon que tanto celebrizou o trompetista norte-americano, fazendo isto com um toque original, mais europeu. Mas sempre à americana, é claro, para nos fazer lembrar que o jazz não nasceu na Europa...

* Greenberg, Rodney, George Gershwin, 1998, Phaidon Press Limited, London
Rodrigo Nogueira
rodrigo.nogueira@bodyspace.net

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