DISCOS
The Fiery Furnaces
Widow City
· 16 Nov 2007 · 08:00 ·
The Fiery Furnaces
Widow City
2007
Thrill Jockey / Dwitza


Sítios oficiais:
- The Fiery Furnaces
- Thrill Jockey
The Fiery Furnaces
Widow City
2007
Thrill Jockey / Dwitza


Sítios oficiais:
- The Fiery Furnaces
- Thrill Jockey
Vigor, alquimia e riscos triunfantes transbordam a um dos mais conseguidos discos a cargo deste estimado par de irmãos carismaticamente indie.
Nunca é muita a distância a separar um novo disco de Fiery Furnaces daquilo que se pode tomar como um milagre. Designar Widow City como um fenómeno pode eventualmente ajudar a compreensão a aceitar que, embora seja excessivo e exuberante o virtuosismo musical exibido pelos irmãos Friedberger nos álbuns acumulados, esse mesmo justifica-se em pleno quando, enquanto pulmão de mil arranjos, ritmos e harmonias alinhadas, surte um interesse magnético numa maioria avassaladora das sequências. Mais surpreendem as manobras freneticamente desenvolvidas pelo génio de Matthew Friedberger – multi-instrumentista e principal arquitecto de toda a ambição FF – por tão imediatamente fazerem crer que, para o próprio, debitar música será uma actividade tão natural como respirar. Poderia alguém tentar conspirar a teoria de que os Fiery Furnaces haviam composto a totalidade de Widow City em sessões ininterruptas de 48 horas registadas ao longo de vários fins-de-semana e essa fantasia não mereceria uma contra-argumentação devastadora ao ponto de a ridicularizar. A margem que se concede à infiltração de tudo o que brota da cornucópia Fiery Furnaces – assim como de Widow City - nunca é a mesma que se concede a um outro nome indie mais regular. Exige uma sobre-humana capacidade de adaptação um duo que persiste em avolumar a incessante complexidade das suas óperas rock tutti-frutti, como se isso fosse um dever dinástico. O milagre da sincronização bate forte quando, a partir do número certo de escutas, Widow City revela que são mais lúdicas e construtivas do que caprichosas e auto-indulgentes as artimanhas instrumentais de Matthew Friedberger e o infinito serpentear da lírica teatral da mana Eleanor.

O presente trabalho merece até um título que se adequa na perfeição à abundância de ideias que o povoam como viúvas de parceiros mantidos em relações poligâmicas perdidas em memória incerta. Até certo ponto, a superabundância de recursos espalhada por toda a parte do sexto longa-duração a cargo dos Fiery Furnaces faz crer que esta pode até ser uma parte desencontrada das restantes que formariam um imaginário álbum triplo - esse que, por sua vez, comportaria todos os riffs e linhas de teclado atípicas necessárias ao acasalamento assimétrico pelo qual desesperam as fórmulas que por aqui não conhecem direito a mais que um minuto de fama. Muitas das componentes pertences a Widow City mereceriam as suas próprias mazelas e sequelas: poderia bem conhecer outra variante o delay desengonçado que torna “The Old Hag is Sleeping” num baloiço entre a energia e a dormência, assim como ninguém negaria a uma alma-gémea do riff de casta Deep Purple que estoira em “Navy Purse”, a oportunidade de se afirmar numa faixa em que conhecesse renovadas contrariedades ao seu domínio (estilhaços instrumentais, breaks de bateria materializados instantaneamente, etc.). Os Fiery Furnaces recuperam referências vagas da década de 70 (conforme assumido em press-release), enquadram-nas numa progressividade repleta de pontas soltas e, com isso, permitem a que a imaginação de cada um possa colorir à sua maneira a face oculta de Widow City. O luto que leva a cabo o disco é em honra do que (ainda) não se conhece.

Tudo isso acaba por ser mais cativante com a transformação de cada música de Widow City num mini-jogo de espionagem dicotómico em que avançam separados dois peões principais, que podem ou não encontrar-se em cumplicidade numa esquina onde se deparam inicialmente de costas voltadas um para o outro. Ocasiões há em que é a melodia que anda - à cabra-cega - a farejar o rasto de uma chama rock amamentada pelo catálogo mais pós-punk da Rough Trade (ex-casa dos Furnaces). Por vezes (sendo uma dessas “Clear Signal From Cairo”), é a repetição das lenga-lengas exercitadas pela metade feminina dos FF que demora a centrar a mira no absurdo Monty Python de algumas canções (repare-se nas semelhanças fisionómicas entre o Matthew surgido na contra-capa do disco e John Cleese na sua juventude). Outros momentos ainda há em que parecem inconjugáveis a excentricidade extracontinental e um sentido clássico estranhamente estabelecido em alguns dos arranjos que oferece ao disco o teclado Chamberlin (que produz som através de tapes captadas a outros instrumentos). A liberdade, que havia sido condicionada pela conduta estritamente conceptual do anterior Rehearsing My Choir, é novamente desbloqueada para que Widow City volte a ser o festim de inesperados golpes musicais que se espera dos Fiery Furnaces.

Mediante condições climatéricas favoráveis, pode até ser que me decida a enviar um pombo-correio na direcção dos escritórios da Thrill Jockey em Chicago, transportando consigo uma mensagem de congratulação ao cuidado de Bettina Richards. Aproveito o ímpeto comunicativo e dito um telegrama que seja lacónico ao troçar com a Rough Trade pela perda enorme que foi a saída dos Fiery Furnaces. Se a baba vertida sobre o teclado entretanto não sabotar o ordeiro funcionamento do processador deste computador, pode ser que consiga, pelo menos, salientar que Widow City é um dos grandes discos do ano.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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