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Avant 003
Fuengirola, Espanha
1-3/08/2003


A distribuição dos grupos por estilos no Avant 003 foi uma opção que muito agradecemos à organização deste jovem festival, situado num local privilegiado. A atmosfera intimista com que nos receberam deveu-se, em grande parte, à muralha de pedra que rodeia o castelo, que literalmente impõe uma barreira intransponível de onze séculos ao mundano e frenético bulício da Costa do Sol, deixando-nos com uma perfeita moldura medieval do séc. X, invadida por saltimbancos no séc. XXI.
Sentimos a brisa, as bandeiras ao vento e, desorientados, perguntámo-nos se, para lá da nossa percepção, um rei estaria a observar-nos ou se ele iria desencadear alguma batalha.
A irregularidade do piso para dançar salta à vista, eu temo os desníveis. A decoração do castelo é deveras singela, a iluminação a cargo de projectores, carpetes vermelhas, um espaço feito de plástico transparente (D-Latex) e extensões a apontar para o mar.
Apesar das dimensões do castelo falarem mais alto, é motivo de alegria o plantel promissor mas reduzido de bandas de alto calibre.

Nota dissonante: o WC constituía uma réplica quase perfeita do filme “Westward the Women”, com efeitos fantasmagóricos cada vez que alguém pressionava o botão do secador eléctrico das mãos.

TRADUÇÃO Helder Gomes

01/08
Pós-rock: uma designação pequena para uma noite variada

Notes to Myself

Os espanhóis e estreantes Notes to Myself apresentaram guitarras, ritmos e melodias, cumprindo com dignidade a função para que tinham sido destacados: a inauguração do Avant 003 no Castelo de Sohail. O aperitivo rock-clássico-contemporâneo foi bem servido.

Velhocido

Elegância, evocação, desafio da beleza? São, entre outros, os postulados com que estes três rapazes albergam e fazem apelo ao trabalho que desenvolvem com a sua música.
O vídeo que exibiram durante a actuação foi, no mínimo, revelador. Um primeiro plano das suas faces, vistas num alargado modo traveling focado a partir de perspectivas distintas, gestos frios e acres, em consonância com um estilo experimental há muito do meu agrado.
A formação espanhola, perita em mesclagens difusas, deixou-nos com vontade de pedir de novo o menu e analisar à lupa os ingredientes deste misterioso prato que degustámos.

Hood

Aos irmãos Adams agrada a ideia de que o seu público fica deprimido quando escuta as suas canções. Estávamos perante dois amantes sem cérebro do mais puro espírito punk. Tal subtil fantasia não encontrou adesão no Avant. O público, mais do que tristeza ou sucedâneos de nostalgia, exigia qualidade.
Talvez seja esta, para os Hood, a forma mais simples de prestar homenagem a tão brutal descarga de melancolia, aos reflexos da sua Yorkshire natal, o seu habitat natural, a sua fábrica de música.
Pouco importa que sejam incluídos na expansiva onda do pós-rock. Os Hood soam a Norte, a sol tímido, a casas sem aquecimento e a janela que filtram um frio danado. Guitarras dissonantes, mesclas de instrumentos pouco frequentes, uma voz seca e ecos inquietantes situam-nos no extremo de um vanguardismo intangível, delimitado por traços grossos, como as texturas de Munch. As projecções que escolheram para a sua actuação evocavam a sensação circular de infinita tristeza dos Invernos ingleses.

Tortoise

Na sua primeira passagem por Espanha, o quinteto de Chicago impressionou com a sua mestria abrindo fissuras profundas na memória de muitos. A iluminação do cenário recreava a atmosfera de uma sala de interrogatórios de um velho filme americano durante os anos 20 – pelo menos, foi isso que eu vi.
Ali, nada estava fora do sítio e respirava-se o entendimento e a coordenação admiráveis. O desfile de luzes e sombras, para os que desfrutavam de um bom enquadramento, conduziu-nos a um dos momentos de maior tensão de todo o festival. Uma jornada mística digna de um capítulo memorável de um bom livro de ficção científica. John McEntire, o líder da banda, pode sentir-se satisfeito.

Mogwai

Ser mago de qualquer coisa custa muito. E ser mago da sugestão, ainda que seja temporariamente, é algo louvável e digno de aplauso.
Assistimos à estreia em Espanha do novo disco “Happy Songs For Happy People”, de que chegam ecos de decepção de muitas frentes. Assimilados estes rumores, pudemos desfrutar das suas guitarras torrenciais, cadentes e melódicas.
Os Mogwai desconjuntaram-se em sugestivos e húmidos movimentos, semelhantes a pequenas descargas eléctricas. Este pequeno aprendiz de masoquista esqueceu-se do tempo, prolongou o concerto e adormeceu uns quantos da assistência, feito que poderá juntar à sua lista de execuções enquanto mago da sugestão.
Para os Mogwai nada disso importa, nem para os que os consideram droga dura que não bate. Eles parecem dispostos a tudo e, para todos os que os viram num contexto exclusivamente musical, foi unânime a crença nos seus incríveis e fulminantes poderes anestésicos.

02/08
Soirée electrónica: o que se passa com o house?

Gilles Peterson and Earl Zinger

Earl Zinger apresenta um look digno de menção: semelhante a Homer Simpson depois de um regime de beterrabas, ao contrário de Mr. Gilles Peterson, com um ‘grand moustache’, novo corte de cabelo e uns reflexos que em nada ficam a dever aos de Bruce Lee. Impossível esquecer a desenvoltura com que saltava a mesa de misturas, manuseava o microfone e o passava a Earl Zinger, convertendo-nos em testemunhas de um assombroso domínio da linguagem gestual com que dava ordens aos técnicos de som.
As misturas de Gilles polvilhavam as paredes do castelo sem danificá-lo e nada faltou no extenso repertório de Gilles e do seu parceiro Earl. Ainda assim, algo soou profundamente discordante... As quase duas horas e meia de actuação foram insuficientes perante um público ávido de dança: “Muy bien, Muy bien”, soltava Earl, que arranhava o Espanhol, umas vezes em directo, outras samplado. De novo, “Muy bien, Muy bien” e o espactáculo terminava.
Bravo, Gilles, és o maior! Estive quase para gritar mas, felizmente, consegui conter-me, teria soado muito hype. Contudo, em nada teria surpreendido o meu gesto de fidelidade ao patrão da Talkin’ Loud, os patronos por excelência da música neste século.

Hacienda

O som dos Hacienda chegou na forma de uma pequena decepção para nós que morríamos de curiosidade e esperávamos dançar pela noite dentro. Uhmmm! Soaram distantes como se uma barreira invisível se interpusesse entre a actuação e o público. Os que conheciam os seus temas confiavam neles, na frescura das suas composições e na destreza para misturar estilos. Mesmo assim, ainda se notavam algumas caras de espanto, do tipo “o que é que se passa?”. Uma falha de som de repente converte uma actuação maravilhosa num diapositivo. O seu nu-jazz soou enlatado. E uma última vicissitude do que podia ser e não foi: não soubemos aplaudir com coerência.

Nils Petter Molvaer

O trompetista norueguês que reivindica o punk abriu suavemente as suas asas no Avant. Molvaer, que gosta de fundir sons com o seu trompete e que considera Stevie Wonder o único artista capaz de fazer composições alegres, respondeu com uma precisão milimétrica a todas as previsões que anunciavam uma peculiar maneira de tocar electro-jazz. Um grupo voltado para a experimentação que confecciona estilos não catalogáveis, acariciados por Matthew Herbert.
Em silêncio sepulcral, quase imóvel perante o seu trompete e em contínuo incitamento à luta de ritmos lentos e mortiços, apresentou as suas inscrições de techno industrial sustentadas por um baixo e que serviram para colocarmos a pergunta: “Molvaer narra a história de uma tortura?”. Um laptop em cena e fumo, muito fumo. Não será ele o próprio Herbie Hancock, em forma, e com o tom mais acima?

Unkle Sounds

A história fugaz da música electrónica ficará eternamente grata a Mr. Lavelle, pelas suas multi-funções em Mo’Wax e pelo seu génio arrebatado que o leva a plantar-se defronte de uma impecável mesa de misturas, sempre acompanhado por alguém de confiança.
Unkle e companhia executam pós-dança, electro, house, industrial, não importa bem o quê. O que parece claro é que os Unkle Sounds dominam com fluência a linguagem da festa e manipulam ritmos com muita destreza.
Os Unkle ocuparam uma posição privilegiada dentro das actuações especiais que passaram por esta edição do Avant. Os rapazes, possuídos e possuidores e em plena osmose, manipulavam os botões da mesa de mistura com muita precisão e os ritmos obedeciam a um envolvente electro house, puro e destilado. O público estava hipnotizado com a batida.

Mouse on Mars

Andy Toma e Jan Stefan Werner chegaram frescos de Düsseldorf com a etiqueta IDM – Intelligent Dance Music na bagagem e encarregaram-se de encerrar a noite de sábado.
A sincronia destes velhos amigos, ao comando da sua nave e assumindo o controlo de uma imensa torrente de ritmos deixaram-nos boquiabertos, apesar de estar quase a amanhecer.
Fomos feitos reféns de uma das prestações mais explosivas do Avant, nas mãos de autênticos terroristas espaciais, ao leme da nave de sons em que havia transformado o castelo. Fumadores compulsivos, foram da electro pop aos limites do techno com viagens pelo hip-hop.
Renunciaram a uma qualquer ditadura de ritmos, fazendo apologia do avant-garde e da anti-ideologia. Por fim, a sensação de um novo caminho inaugurado e com o estranho paralelismo de sair de um concerto ou de uma aula magistral sobre a arte da irreverência. foto Oihana Casas

03/08
Toxico-musicalidade nocturna

Explosions in the Sky

Vindos do Texas, incluíam-se entre os pequenos grandes desconhecidos do evento e chegavam com um novo disco debaixo do braço, encabeçando o cartaz do terceiro e último dia do festival. “Drama, tragédia e o êxtase dispersão mais hedonista são alguns dos detalhes da sua carta de apresentação. Os Explosions in the Sky não pouparam esforços numa série contínua de vaivéns de guitarra, muita guitarra. A partir da tragédia real, o prazer, a dor chegavam em doses comedidas.
Aqueles que não gostaram particularmente dos Mogwai dos primeiros discos: infinitos circuitos melódicos, catarse orgástica, em definitivo devaneio instrumental, com esta banda do Texas poderão preencher essa lacuna. Mais efectivistas, sabem como atrair a atenção do público e fazer com que ele não vire a cara do palco.

Robin Guthrie

Todos nós sentimos saudades da frescura de Elizabeth Frazier e do seu sorriso. Robin Guthrie, o seu ex-companheiro dos Cocteau Twins, ocupou o lado esquerdo do cenário, delimitando assim o território para a instrumentalidade e, descalço, sob uma luz very soul, impôs uma fria distância entre o público e ele com a sua guitarra. A intimidade forçada de Robin desprendia desassossego, uma perceptível mensagem de infortúnio, a serenidade de desfrutar de um trabalho bem realizado. Dos Cocteau Twins identificamos algo do seu downtempo cadenciado. Uma obscuridade magistral, tangível e um ambiente recolhido numa calorosa palavra francesa: nostalgie.

Alpha

Andy Jenks e Corin Dingley, naturais de Bristol e dissidentes da Melancolic (propriedade dos Massive Attack) são a face mais visível da sua identidade. A sua proposta parte da música electrónica, a pop, o jazz, a soul e a folk. Conhecidos pela sua mestria na hora de inventar e recriar atmosferas e pelas suas letras de pessimismo latente, que às vezes demonstram o desejo de nunca se ter nascido... É da sua essência que libertam um romantismo vital, que não deixa outra saída senão a frontalidade agressiva de uma realidade a provocar, buscando o golpe de magia que a faça desaparecer. A sua actuação foi um parêntesis entre muitas outras coisas. Se Sylvia Plath não nos tivesse abandonado há tanto tempo, nela teriam um bom perfil de incondicional.

Lamb

Muito poucos deverão ter ignorado a saia de Louise Rhodes, rosa, violeta, larga, com um ligeiro recorte na cintura e com uma impressionante bainha. Um tesouro a sair do baú do Avant.
O duo desprendia frescura e dinamismo, Andy Barlow corria de uma ponta à outra do palco golpeando energicamente um tambor, enquanto Lou sorria em tom colegial, demonstrando o mais puro optimismo. O concerto decorreu em permanente busca e experimentação.
Os Lamb viajam de um estilo de dança algo jazzístico a um estilo meditativo muito pessoal, das clássicas linhas de corda a uma sucessão de samples desmedidos. Introduzem instrumentos subtis que desprendem estruturas delirantes, o que explica a perfeita harmonia de Andy com a tecnologia. A sensação de incoerência e de caos predomina no decurso da sua actuação e vence perante as especulações dos que anunciavam um obscurantismo made in Portishead. A mistura de elementos clássicos e electrónicos nos Lamb é como ganhar pulso à insuportável necessidade de comparações.

Amon Tobin

O jovem brasileiro não esqueceu a alquimia nesta ocasião, os sons escuros, as proféticas e generosas descargas de decibéis.
Protagonizou passos indígenas e atmosféricos baseados no electro-soul, fez vozes digitalizadas, sequências monstruosas e obscenas, algumas vezes directas ao subconsciente, irreconhecíveis e internas. Tobin ergue a fasquia posicionando-se em pé de igualdade com o público que, a qualquer momento, se mostra apto a responder aos seus sinais. A sua performance é uma enorme mancha de toxicomusicalidade nocturna.


Antonia Ortega Urbano
antonia@bodyspace.net
01/08/2003