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Antony + Cocorosie
Teatro Passos Manuel, Porto
08/11/2004


Em dias como os de hoje, nada melhor que a teatralidade de Antony e das Cocorosie para comemorar a reabertura do Teatro Passos Manuel. O público acorreu em massa: casa absolutamente cheia, pessoas sentadas nos degraus, pessoas em pé. Espanto: Antony, o menino querido de Lou Reed e David Tibet, havia de começar com aquilo que, provavelmente, mais se esperava para o final da sua actuação: a fabulosa “The Lake”, canção para o poema de Edgar Allen Poe com o mesmo nome, editada num split EP com os Current 93, intitulado Live at Saint Olave's. Desde logo, a figura de Antony chama a atenção pela luminosidade, por projectar sobre si uma imagem angelical, asas e lágrimas de ouro, uma auréola de infinita claridade. A sua voz então, é devedora aos deuses, a tudo o que é divino e, em última instância, a Nina Simone. Seja de que maneira for, a sua voz tremule e dramática – quase trágica – tem o poder de levar qualquer canção para um patamar superior, algo quase impalpável.

© Carlos Oliveira

Dos Johnsons, a banda que habitualmente apoia Antony, restava só alguém que, na guitarra acústica, travou batalhas de mãos dadas com as teclas superiormente manejadas por Antony. Num momento de pura descontracção, Antony confessava ter uma enorme vontade de viver em Portugal – afinal de contas era a terceira vez que de deslocava a Portugal para actuar. O bom humor que reinou por entre episódios relativos a Nova Iorque, diários, trannies e passaportes acabou por contagiar o público que não raras vezes se manifestava com correntes de risos e gargalhadas. E depois a sua voz, sempre, e outra vez, fala de amores impossíveis, do amor por pessoas mortas, de dúvidas que demonstram, pouco a pouco, para quem desconhece, o seu verdadeiro eu: “Are you a boy, or are you a girl?”, perguntava Antony com uma dramatismo capaz de arrancar baba e ranho ao mais amorfo dos seres. Quando largava o piano, chegava-se para mais junto do público, no estreito palco do Teatro, e cantava de pé, para um imóvel microfone, enquanto agitava os braços em movimentos bizarros e aparentemente abstractos – os tiques perpetrados pelas suas mãos induzem uma certa dispersão de ideias e um descontrolo que contrasta com a calma que demonstrou durante toda a actuação. Antony – que contou com a ajuda das manas Cocorosie para uma das canções – havia enchido a sala com a sua portentosa voz; uma voz que bastaria só por si e pelo veludo azul que cobre como um manto as canções que conduz.

© Carlos Oliveira

Mudam-se as figuras, mas mantém-se o ambiente. Depois de uma estreia memorável num palco de Paredes de Coura rodeado por chuva e bolinhas de sabão – um dos muitos cenários ideais para a música das manas Casady -, um anfiteatro a rebentar pelas costuras, testemunhava a – que conveniência – teatralidade tão bem retratada em La Maison de Mon Rêve, o disco de estreia das Cocorosie. De novo alguém a desempenhar as funções de human beat box, de novo a maquinaria que faz lembrar brinquedos e que reproduz sons bizarros vindos de espaços tão distintos como galinheiros, celeiros e espaços de uma profunda beleza e infantilidade sonora, de novo duas vozes que se tocam como dois corpos que se fundem na escuridão, de novo o intimo, a meninez, a ingenuidade, a felicidade em pequenos pacotes, em retratos queimados de ponta a ponta pela cinza das chamas. É um sonho que aqui se percorre; um sonho palmilhado lentamente, um álbum de fotografias ressequido pelo tempo que passou desde uma infância cujas recordações surgem já só a preto e branco. Numa tela são projectadas imagens que mostram personagens devotas ao sexo oral – explicito e repetido -, e de fantasias várias. Na música das manas Casady parece haver espaço para tudo.

Há uma harpa, uma guitarra, há teclas e há Antony e o seu guitarrista numa das canções. Percorre-se então La Maison de Mon Rêve nos seus melhores momentos – “Lyla” foi – e daí, como havia de não ser? – comovedoramente arrepiante – e ainda houve tempo, como em Paredes de Coura, para alguns temas inéditos. Surge então a deliciosa e jocosa “Jesus Loves Me”: “Jesus loves me / But not my wife / Not my nigger friends / Or their nigger lives / But Jesus loves me / That's for sure / 'Cause the bible tells me so”. Surge a descrição de um anjo que tem tanto de terrível como de adorável: “Oh if every angel's terrible / Then why do you watch her sleep / You love to hear her sing / And wear purple eyes like rings / Well the flowers have no scent / And the child's been miscarried” e surge a curiosa “Madonna”. Foram muitas as histórias que desfilaram por entre o silêncio, muitas feridas curadas por palavras ou paisagens; celebrou-se mais uma vez a doçura, a simplicidade, o cor-de-rosa e o branco e – porque não – a utopia. Quem pode, afinal, negar o poder de um sonho?


André Gomes
andregomes@bodyspace.net
08/11/2004