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Terrae Ignota Gharana
Rivoli, Porto
04/10/2004


A reunião de culturas, independentemente da sua forma ou dos seus contornos de manifestação, é sempre uma coisa bonita de se assistir. Quando acontece na música, tem a capacidade de fundir mil e um sabores, cheiros, paisagens, lugares; consegue edificar nas mentes os rostos e as expressões de pessoas que, embora pareçam familiares, praticam o (não deliberado) culto do anonimato. É quase como uma máquina do tempo que mistura as sensações como quem baralha cartas ou organiza cuidadosamente uma colecção de selos: o todo é sempre mais importante que as suas partes. Ou como um saco de bolas de várias cores, ou um arco-íris. Uma caixa repleta de cartas ou um quarto com espelhos em vez de paredes. A world music é sempre uma caixinha de surpresas.

Os Terrae Ignota Gharana – expressão que significa “Família de Terra Desconhecida” - são um colectivo formado em Varanasi, uma cidade sagrada da Índia, por sete músicos provenientes de cinco países distintos: de Espanha, Jaume Cata e Marc Planells; dos Estados Unidos da América, Chris Santos; da China, Heidi Che; do México, Raul Saldaña; finalmente, de Portugal, Rui Salgado e Ricardo Passos. Estudaram os seus instrumentos, recolhidos em vários locais portadores de diferentes tradições musicais, e gravaram na Catalunha, no Verão de 2003, o auto-intitulado álbum de estreia, um veículo para a fusão de sonoridades oriundas da Turquia, do Japão, da Catalunha, do Curdistão e de vários outros pontos do planeta.

Para a estreia na cidade do Porto – toda a banda manifestou a sua alegria pela oportunidade –, um Rivoli muito bem composto. No palco, uma linha de velas cobria toda a frente do palco. No meio, um castiçal. Atrás, em cima de um pequeno estrado, os instrumentos. Sentados à chinês (excepto Rui Salgado, o contrabaixista, que ficou de pé), os Terrae Ignota Gharana percorreram alguns dos temas do seu disco de estreia, como “Shakti”, colorido por uma sitar e pelo sarangi – um instrumento de cordas da música clássica indiana tocado com um arco – e atravessado por uma melodia tão catchy quanto desenvolta, “Kurdistan”, um tema que tem por base a música tradicional do Curdistão, “Set Set”, uma canção que se constrói primeiramente de jogos de vozes cavernosas – a fazer lembrar um qualquer templo de monges - e se prolonga depois para uma pitoresca e colorida viagem pela Turquia.

Há ainda tempo para se ouvir os maravilhosos sons de guzheng, um instrumento tradicional chinês com 21 cordas que se assemelha imediatamente a uma harpa, destemidos desafios entre vários instrumentos e alguns brilharetes. Cada instrumento encontra o seu local perfeito para servir da melhor forma o conjunto. Por vezes dialogam entre si de uma forma harmoniosa. As projecções de vídeo – realizados ao vivo pelos Monkeyville (Raul Faria e Miguel Miranda) mostram o pôr do sol, o mar, as nuvens e todos os elementos da Natureza intrinsecamente diluídos na música dos Terrae Ignota Gharana. Há ainda paus de chuva, uma variedade imensa de instrumentos de percussão (todos eles acústicos), a voz de todos os elementos. Durante mais de uma hora, fez-se o elogio à flutuação do cosmos e à união das tribos. E fez-se uma viagem. Longa e sem retorno.

André Gomes
andregomes@bodyspace.net
04/10/2004