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Lou Reed
Jardim da Sereia, Coimbra
04/07/2003


Vinte e duas horas e largos minutos. Noite aprazível.

Dentro dos muros do belo Jardim da Sereia, mais de dois milhares de almas esperam a aparição do mestre. Em mais de dois mil corpos. Corpos e almas de gerações e condições diferentes. Dos 8 aos 80. Do neto aos avós. Do universitário - que acabou de descobrir que muito do que ouve hoje deve-se aos Velvet Underground - ao professor de secundário que passou a sua juventude rodeado de ácidos e da música de Lou Reed. Das tias trintonas - que acreditam piamente que ir a um concerto deste senhor é bem para o estatuto - aos quarentões que já assentaram na vida, têm a sua profissão e os seus filhos, mas que desejam, ali, reviver memórias do seu passado mais estúrdio. Do senhor vestido a rigor ao rapaz de jeans rasgadas ou vice-versa.

De repente, por detrás do palco, surgem cinco vultos de negro. Conheceríamos a sua identidade poucos minutos depois, quando Lou Reed, o Ilustre, sobre os acordes do brilhantemente tocado «Sweet Jane», nos apresentava os seus companheiros de estrada da sua recente NYC Man Tour: Mike Rathke (guitarra/piano-guitarra), Jane Scarpantoni (violoncelo), Fernando Saunders (baixo e caixa de ritmos) e Antony (voz). O mote estava dado.

Abrandada a euforia inicial, Reed ataca um «Small Town» diabólico, do álbum «Songs For Drella». Pressente-se uma noite especial e cheia de arrepios na espinha. Depois de «Men Of Good Fortune», comprova-se o pressentimento. Na introdução de «How Do You Think It Feels », um solo electríssimo saído da guitarra de Reed colhe da assistência uma enorme chuva de aplausos. No final do tema, um simples e único acorde voltou a colocar o público em êxtase. À memória vieram-me os GY!BE. Lembrei-me do como aqueles parcos minutos de distorção simples superavam, em magia, muitos dos crescendos mais saturados da banda canadiana.

De súbito, as guitarras calam-se. Ouve-se a água do chafariz correr em simultâneo à interpretação de «Vanish Act», do álbum mais recente do nova-iorquino, «The Raven», no qual Lou Reed a uma voz, acompanhado pela guitarra-piano (como a apelidou Reed) de Rathke, nos provoca, repetindo várias vezes «it must be nice to disappear to have a vanishing act». No final, o violoncelo e a água formavam uma unidade.

Segue-se outro momento mágico, onde o Ilustre trata carinhosamente «ecstasy» por tu. Sussurra-nos o nome da droga da sua vida e procura orgasmos na sua guitarra prateada. Busca novas sensações ou talvez não. É triste o som que vem do palco. A luz é vermelha, os acordes ácidos.

Reed surge-nos aos sentidos como um contador de histórias de Nova Iorque que anda, por aí, de cidade em cidade, a contá-las a quem as quer ouvir. «The Day John Kennedy Died» é uma dessas grandes histórias. Uma viagem pelas experiências do senhor é o que acabamos por levar dali como recordação. «Bed», mais uma história, segue calma e hipnótica.

A dada altura, o Ilustre, numa das suas parcas intervenções, diz-nos que Saunders vai cantar o tema seguinte. Cinco minutos depois do ataque meloso, cala-se. O público agradece o facto. Não que a sua voz fosse má, mas seria, de facto, melhor aproveitada numa qualquer boys band. Naquele contexto, não serviu mais do que uma lamechice que ninguém queria ouvir. Sem dúvida o pior momento da noite. Surreal, diria.

Nada que «Venus In Furs» dos Velvet Underground não pudesse vir a apagar minutos depois. O público fizera as pazes com Reed pelo momento anterior, mas é Jane, a violoncelista, que brilha num fantástico solo, no qual arranhara o seu instrumento como que este de uma guitarra se tratasse. A partir daqui, e depois do rock’n’roll energético de «Dirty Blvd.», os Velvet voltaram à vida pela recriação de «Sunday Morning» e de um mui rock «All Tomorrow's Parties». Por esta altura, uma trintona loira salta da cadeira e abana a sua cabeleira. Não lhe interessa o que os outros pensam mas o que sente ao libertar-se. Nesse instante, dá-se a aparição inesperada do Mestre Guang Yi Ren em palco. Quase estático e concentradíssimo, impressiona meio público pela calma - branca como a sua traje - que exala. Yi Ren regressa mais tarde para «dançar» o tema atmosférico que introduziria, de seguida, a brilhante e explosiva declamação de Reed para um poema de Edgar Allen Poe.

Já em encore, Antony canta-nos «Candy Says» de uma forma genial e angelical, depois de ter estado apagado durante a maior parte do espectáculo. Se fechasse os olhos, quase que sentia Beth Gibbons por perto. Segue-se «Perfect Day». O público levanta-se e canta. Que momento perfeito! Que noite quase perfeita! Reed e companhia abandonam, heroicamente, o palco.

Regressam para um derradeiro encore. Tocam uma genuína versão de «Heroin» para terminar em grande o que em grande se principiou. Reed e companhia agradecem. Estão comovidos. Nós, os dos 8 aos 80, também. Com arrepios na espinha.


Tiago Carvalho
tcarvalho@esec.pt
04/07/2003