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X-Wife + Wraygunn
Caldas de São Jorge
03/07/2004


Um parque de estacionamento serviu de local de concerto improvisado, na pequena localidade de Caldas de São Jorge, em Santa Maria da Feira. X-Wife, Wraygunn, entrada gratuita. Bons factores para sair de casa e, como é costume nos eventos à borla, o recinto estava cheio de famílias e adeptos da cerveja a 50 cêntimos (grupo no qual também me incluo). A música é o pretexto para sair de casa à noite e ainda bem que assim é. Cada minuto a menos em frente a uma televisão é de saudar.

Os X-Wife não me fazem aproximar do palco. Não o fazem por diversas razões: João Vieira tem uma voz estridente da qual é preciso manter alguma distância de segurança; o som que praticam é um requentado de mil e uma coisas pós-1977, sem qualquer valor acrescentado a favor do grupo; o "vocoder" usado à Daft Punk é das piores invenções para a música, ao lado da guitarra de dois braços. Não que os X-Wife sejam inúteis. Servem para abanar o pé e olhar à volta, desinteressadamente. No entanto, a música da banda é demasiado formatada, igual, uma massa amorfa de batidas electro e uma guitarra abafada pela electrónica. João Vieira pode enganar-se que ninguém dará conta. Nada disto é em si mesmo mau, se a banda fosse talentosa. Não é. Uns singles orelhudos e uma mão cheia de canções com a fórmula bem estudada não chega para convencer da necessidade de prestar atenção aos X-Wife.

"Free at last! Free at last! Thank God Almighty, we are free at last!". A última frase do famoso discurso de Martin Luther King, no Lincoln Memorial, em 1963 dá o mote para a festa rock'n'roll dos Wraygunn. A voz negra de King anunciava a fusão de músicas negras que se seguiriam. "Soul city, we're we go!" "Soul City", a canção que abre o último Eclesiastes 1:11, principiou as hostilidades. O coro gospel B-Magnified abrilhantou o festim, acrescentando uma dimensão nova na música do grupo, mais distante do som Jon Spencer Blues Explosion do primeiro disco, Soul Jam.

Paulo Furtado é um animal de palco. Se os Wraygunn tocarem perto de vossas casas, façam um favor a vós próprios e dirijam-se a esse concerto. Paulo Furtado salta de todos os lados, cai de joelhos, põe em causa a integridade do material e nunca deixa de tocar guitarra. A imperfeição é rock'n'roll e Paulo Furtado é o nosso maior rocker. Prova cabal: quase no final, Paulo Furtado sai do palco e vem para o meio do público fornicar com o cimento, enquanto cantava. Exorcizar males, louvar o sexo, eis as funções dos Wraygunn, sacerdotes rock'n'roll.

A maior parte do concerto foi preenchida com temas do último disco: "Drunk or Stoned" (com Raquel Ralha quase operática em "u u u" deliciosos), "She's a Speed Freak" (maravilha rock'n'roll), "Juice" (blues-punk para alta-velocidade na autoestrada), "Keep on Praying" (boogie-gospel), "All Night Long" (canção próxima do projecto The Legendary Tiger Man) e a insinuosamente sexy "There for the grace of God", com Raquel em destaque.

As canções de Soul Jam sofreram um upgrade estilístico. Os novos Wraygunn libertaram-se do MC e colocaram a tónica no rock, nos blues e na soul, sem intervenções hip-hop inconsequentes. "Lonely" surge descarnada, com Paulo Furtado no papel principal; "Going Down" substitui o irritante MC pela bela Raquel Ralha, sem transformações de maior. Destaque para "Ain't Gonna Break My Soul", com a capacidade dançante acentuada pela cowbell nas mãos de Ralha e pela percussão inflamada.

Pedro Rios
pedrosantosrios@gmail.com
03/07/2004