Festival Santos da Casa - Nuno, Nico + Ovo
Auditório do IPJ, Coimbra
22/04/2004
Escassas dezenas de corpos do lado de cá. No palco, dois homens. Um, Nuno Prata, ex-baixista dos Ornatos Violeta, reservado e breve nas suas intervenções entre os temas. Outro, o turbulento e contagiante Nicolas Tricot, músico francês radicado em Portugal, parte também do projecto Le Partisan e ex-Red Wings Mosquito Stings.
De uma mão cheia de "canções" – no sentido autêntico do termo – e de fios de palavras bem escritas em português se construiu uma actuação digna de um festim que não chegou a ter lugar. "Não deixes de querer fugir" deu mote a uma noite de confessionário. Na boa tradição de cantautor, Nuno Prata, munido de uma guitarra acústica e, a espaços, de um baixo, foi desfilando – em cerca de três quartos de hora – problemas existenciais – inventados ou não – e partilhando pequenas histórias com o público – como se tivesse tido finalmente a coragem de abrir, para todos, a porta do seu pequeno quarto onde, todas as noites, segreda os seus medos, anseios e aventuras a um amigo imaginário.
A marca violeta pairou, inegavelmente, sobre o pequeno auditório na simpática noite de quinta-feira. O registo de voz de Nuno não dista muito do de Manuel Cruz e o universo de Nuno, Nico sofre, apesar de não se esvaziar aqui, de alguns trejeitos de uma banda que foi formativa para um baixista agora metamorfoseado em guitarrista e cantor. Adivinham-se, contudo, novas direcções – felizes – no percurso ainda curto do projecto: pozinhos de Sérgio Godinho aqui e ali, acordes de bossa-nova por todo o lado ou casuais encontros entre uma valsa e um genérico de Violent Femmes ("Fantasma", por exemplo). Em "Volto para casa a pensar na mesma coisa", o homem dos sete instrumentos, Nicolas, larga a bateria, o metalofone explosivo e o kazoo e, suavemente, traça uma bela melodia na sua flauta transversal. A música é simples e directa, as palavras intensas e apaixonantes.
Depois do momento auge de poesia da noite em "Hoje quem" ("hoje quem acordou na minha carne? (...) dos meus sonhos acorda outro alguém") e de alguns agradecimentos tímidos à organização do festival, Nuno agarra-se ao baixo e parte para um mui bem recebido "Guarda bem o teu tesouro" (sob o efeito de um saudoso "Capitão Romance"). As poucas dezenas de moscas que vão compondo a sala estão rendidas. "Já não me importo" serve a despedida.
Curtos minutos depois, os Ovo entram em cena. Maria Radich, ex-bailarina do Chapitô e que, em palco, nos surge como uma espécie de Manuela Azevedo (Clã) meets Sónia Tavares (The Gift) na postura, vai-se deixando levar pela dança ensaiada pelos companheiros, enquanto revela uma voz simpática mas pouco distinta. "Ferrugem a atacar" – atmosfera trip-hop com refrão pop – agarra cedo um público que, com o decorrer da actuação, se vai desencontrando com o mundo criado em palco. Os Ovo parecem ainda demasiado medianos para suscitar grandes paixões.
Não era, contudo, necessário chegar ao quarto tema da actuação dos Ovo, uma bem conseguida versão de "Cantiga do fogo e da guerra" (de José Mário Branco, com letra de Sérgio Godinho), para compreender que a grande fonte de referências do projecto é de origem nacional. Com o “descascar” da actuação, ecos de gente como Clã, The Gift, Três Tristes Tigres foram fazendo-se ouvir. Os Ovo parecem reflectir uma recente tendência: muita da música a emergir actualmente em Portugal já não tem receio de ir beber a fontes de identidade nacional – não que isso seja necessariamente "bom ao mau".
Entre apontamentos de electrónica interessante, dois dedos de pop colorida, alguns devaneios funk e jazz, rock para massas, gritinhos excessivos ("Síndrome de Jerusalem"), jogos de palavras atractivos ("Balada em open") e outros bem menos ("Não mexe, respira"), o projecto foi traçando um percurso de acção em curva descendente. O conflito, esse, não resolvido, parece estar na tentativa dos Ovo de procurarem uma dinâmica ao vivo que em disco não existe. Às tantas, a coisa torna-se demasiado perdida.
Apesar do desastre final, parece haver, nos Ovo, uma luz lá ao fundo, prestes a acender sem o conseguir. Talvez porque são demasiado preocupados em ser profissionais e perfeitos não têm magia suficiente para surpreender ao vivo. Talvez.