Há
noites assim. Noites em que a complacência se mistura com inocência. Noites
em que nada impede que se passe deste mundo para um outro melhor, mais perfeito.
Os Califone serviram sentimentos a frio, emoções despidas a cerca de meia centena
de pessoas. Tim Rutili, em primeiro plano, na guitarra ou no órgão, a controlar
os efeitos ou a cantar, a mexer nos pedais enferrujados que se amontoavam à
sua frente, com uma sapiência que nem mesmo ele sabe existir. Jim Becker, na
outra ponta do palco, segurava uma Fender Telecaster, um banjo, ou um violino.
No meio, dois elementos tratavam de ministrar a percussão. Um, de uma forma
mais, digamos, normal; o outro, de longas barbas e descalço, batia em objectos
de metal e de madeira, numa pandeireta, e em tudo o que pudesse agarrar ou bater.
À segunda canção, "Trick Bird", já se ouvia
Heron King Blues, a última exposição folk
do quarteto de Chicago. Já desde o início do concerto que se ouvia
um barulho estranho, um
feebdack irritante que vinha sabe-se lá donde,
provocado sabe-se lá por quê. E quando começa a terceira canção, e Rutuli se
apercebe que o barulho continua, interrompe a canção, ironicamente irritado,
e pergunta o que se está a passar. Pergunta se é o seu microfone, o baterista
faz o mesmo. Poucos segundos depois, o problema está resolvido. Tim Rutuli sorri,
e anuncia o "
take two". Os Califone partiriam, aliás, para um trio de
canções de
Heron King Blues: "Trick Bird", "Wingbone" e "Sawtooth Sung
a Cheater's Song", sendo que esta última acaba em perfeita exaltação folk: a
percussão bamboleante, com uma
trip de heroína, Neil Young vs Captain
Beefheart, Rutuli controla os efeitos. É folk que
swinga, é folk que
jazza. Levanta-se a poeira, erguem-se os olhos na mesma direcção. O público
todo sentado, em partilha de emoções. Ninguém sorri, estão todos já demasiado
longe para conseguirem voltar. O
slide empurra os limites da dor para
domínios impalpáveis. Afagam-se agora as memórias passadas, o passado mais presente.
Quando Tim Rutili tocava na sua guitarra acústica com um pouco mais de força,
também a noite vergava aos encantos da música dos Califone. Era agora tempo
de percorrer outros álbuns dos Califone.
Quicksand/Cradlesnakes foi
obviamente paragem obrigatória: "Horoscopic. Amputation. Honey", "Mean Little
Seed" e "Michigan Girls". Continuavam as
jams folk e blues, o banjo em
distorção, ou o violino tocado como se fosse um cavaquinho ou na sua forma mais
comum, a percussão forte e peculiarmente esclarecida.
A meio da actuação, Tim Rutuli aproveita para desejar a todos uma "
Boa Páscoa,
cheia de família, ovos, chocolate, amêndoas, coelhos, rãs …". Alguém sugere
gambozinos. Tim não percebe o significado. Alguém diz "
gambuzines" ou
até mesmo "
gambuzanus". Tom Rutuli ri e toda a gente com ele. O bom humor
esteve presente no palco do início ao fim do concerto. Numa das canções seguintes,
Jim Becker parte uma corda da sua Fender mas continua. Nada o poderia fazer
parar. Nada podia fazer parar o homem dos três instrumentos. No intervalo antes
do
encore, Jim Becker troca a corda da guitarra enquanto Tim Rutuli,
descontraidamente, fuma um cigarro e passeia por entre a plateia. A mesma pessoa
que havia sugerido os gambozinos sai da sala a dizer que "
eles não existem",
num inglês algo macarrónico. Algumas risadas depois, os Califone voltam com
"2 Sisters Drunk on Each Other" e mais dois temas que poriam fim ao concerto.
E quando as duas guitarras, quase em uníssono, se juntam, travam a luta pela
liberdade, a procura pela aurora. Tinham-se passado quase duas horas, mas se
outras tantas viessem, ninguém arreadaria pé, por certo. A poeira voltou a assentar
e os gambozinos já dormiam.