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Califone
Galeria Zé dos Bois, Lisboa
10/04/2004


A janela que dá para a rua da Galeria Zé dos Bois, no Bairro Alto, em Lisboa, é uma coisa óptima nos concertos. As pessoas vão passando; famílias ou casais que foram jantar, jovens que vão beber uns copos, entre muita outra fauna nocturna do Bairro Alto. Algumas indiferentes ao que se passa no palco, outras parando, curiosas, mas uma coisa é certa: nenhuma delas sabe o que raio se está a passar dentro daquele sítio esquisito. Pode-se dizer também que, dia 10 de Abril de 2004, algumas das pessoas que estavam dentro da sala também não sabiam.

Antes do concerto, olhávamos o palco e, ao ver duas baterias, ficávamos logo a pensar algo como "vê-se logo de que cidade vêm" [Chicago]. Mas quaisquer dúvidas seriam tiradas. Interagindo entre flautas, xilofones em malas, melódicas, brincadeiras com os componentes das baterias e percussões quase tribais, os dois percussionistas não têm nada a ver com os dos conterrâneos Tortoise. Qualquer semelhança era pura coincidência. Os Califone são quatro; os dois referidos percussionistas (um deles, Ben Massarella, a mistura de B Real dos Cypress Hill com a barba e o cabelo de um Stanley Kubrick dos últimos anos de vida, ou de um Peter Jackson pós-Senhor dos Anéis), Tim Rutili - a estrela, o cantor/guitarrista - e Jim Becker, tocador de guitarra, banjo e violino. A viola de John Cale nos Velvet Underground continua viva no violino de Jim Becker, por vezes distorcido. Tim Rutili, com um ar frágil, foi-se movimentando entre microfones (um dos que atirou ao chão e partiu), dezenas de pedais, guitarra acústica, guitarra de doze cordas, guitarra eléctrica ou um teclado.

A música dos Califone não é, de todo, fácil de descrever. Desde o blues, que neles é rei, misturado com o experimentalismo krautrock de uns Can, Faust, Neu!, até ao funk de "2 Sisters Drunk on Each Other" (do último disco "Heron King Blues", que ao vivo se torna um épico monumental), passando pelo rock'n'roll puro, os Califone fazem um som que, de facto, não é para todos, mas que conseguiu encantar a maior parte da Galeria Zé dos Bois, que rebentava pelas costuras. Dos momentos mais calmos aos mais barulhentos, ou com elementos mais electrónicos, de feedback, os Califone tocaram com a alma, em verdadeiro espírito blues. A improvisação esteve presente especialmente nos momentos mais barulhentos, sendo uma componente forte da música do quarteto, bem no espírito da sua cidade natal. Evitando o encore, despediram-se uma primeira vez não chegando a sair do palco, tocando mais alguns temas, e logo aí saíndo emocionados, dizendo bem da cidade de Lisboa, e deixando o público a clamar por mais.

Os Califone conseguiram marcar quem os viu ontem à noite. Os que estavam do lado de dentro da Galeria pela positiva, e os simples transeuntes, que paravam curiosos para ver quatro tipos com flautas, banjos, violinos, entre muita outra parafernália instrumental, pela estranheza, decerto que ficaram com pesadelos para durar algum tempo. Mas isso é problema deles, e para os sortudos que os viram do lado de dentro só coisas boas podem ter vindo. Que voltem depressa.

Rodrigo Nogueira
rodrigo.nogueira@bodyspace.net
10/04/2004