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Ursula Rucker
Teatro Municipal São Luiz, Lisboa
02/04/2004


© Helder Gomes
Quase uma semana depois da mudança de hora, o final de tarde em Lisboa é claro, ameno e com aquele ar das primeiras chuvas de Abril. O ritual de bem nutrir o organismo antes de uma noite longa tem um único mandamento: engolir uma refeição macrobiótica bem preparada antes de seguir caminho, que é como quem diz, neste caso, descer ao Chiado. A compra do New Musical Express vai ter de ficar para outro dia, passar nos Restauradores só ia servir para marcar passo.

O jornal do dia dá conta das novas das mutilações de soldados americanos em Falluja, por muçulmanos que perderam a cabeça. Aqui, a realidade é outra. Como não vai muita gente na carruagem, consegue-se um lugar sentado no metro. A ideia é chegar ao Teatro Municipal São Luiz a tempo de ver Ursula Rucker pisar o palco. Este é o destino de todos quantos preferiram a palavra falada da poetisa à electrónica dos Kraftwerk, ali ao lado no Coliseu dos Recreios. Mas há ainda tempo para um café.

Lá dentro, o espaço é muito bonito, fechado sobre si, com uma arquitectura frágil, castigada pelo tempo. Sala meio cheia, meio vazia, com boas perspectivas de se compor. Do primeiro anel vê-se o fosso lá em baixo, uma pequena massa humana a ocupar os seus lugares. O ingresso para o espectáculo diz “O Acaso”, o início da sessão está previsto para as 21 horas e destina-se a maiores de 12 anos. Um rápido olhar varre o recinto de uma ponta à outra, já há mais gente lá em baixo e nos dois balcões.

Ela entra, bela e grávida, uma fita lilás prende-lhe os cabelos, traz um vestido azul-escuro e um blusão, uma flor por detrás da orelha direita. Em muitas das canções, leva uma das mãos ao ventre, acariciando o feto que carrega consigo. E quando não o faz, faz qualquer outra coisa como simular segurar um punhal com a mão e enterrá-lo no ventre, quando profere a palavra “murderers”. O instante, fugaz e que deve ter passado ao lado de muitos dos presentes, impressiona como o caraças.

É em experiências como esta que é importante tirar notas mentais no escuro. As fábulas humanas de Ursula Rucker já foram contadas nos álbuns Supa Sista e Silver or Lead, mas ao vivo é diferente. É sempre um pouco diferente. Que colaborou com os Silent Poets e os The Roots, ou que partilhou o espaço de criação com King Britt e Josh Wink pouco importa quando se tem a mulher à distância de um olhar, da refulgência de pensamentos confusos com pedaços de lucidez de permeio.

A senhora vem de Filadélfia, da Philly bem amada, das ruas mal amanhadas, de um caldo criativo sem paralelo. Mistura a soul com o hip-hop, enrola as suas palavras em editais poéticos, anunciados aos altifalantes do mundo. Ninguém a ouve, é certo, mas tê-la a tocar para cada um de nós é como acordar de madrugada e tomar um sedativo, inebriante e engajado de consciência social. E voltar a adormecer e sonhar em devolver o poder à plebe.

Começou com “Supa Sista” e falou em enfiar qualquer coisa no rabo dos Estados Unidos. Esses ”United States of whatever”, que satirizou em favor da gente amistosa de Portugal. Referiu-se à actuação no Porto, no dia anterior, e a outras no nosso país. Disse que talvez se mudasse para cá, com o seu filho Cypress mais o puto que estava para nascer, mas concluiu, mesmo a tempo de não soar foleira, que talvez fosse melhor deixar as coisas como estavam, ao nível da vivência de momentos especiais nas passagens por uma terra que a recebe com calor e afecto.

Cantava no centro do palco, ora sentada, ora de pé, ladeada pelos seus dois discípulos, o guitarrista de óculos de massa e camisa, à sua esquerda, e o baterista com t-shirt e uma boina vermelha, no extremo oposto. Depois de cantar uns 75 minutos, abandona o palco para regressar menos de um minuto depois, de braços abertos. Foi ocupar o círculo de luz que havia sido gerado por um projector no local que deixara vago. Atrás deles, um painel vermelho-sangue, sem representações pictóricas.

Cantou “What???”, lançando violentas farpas contra o estado fétido do hip-hop actual, foi agressiva nas palavras, doce na interpretação. A cadência da sua voz dá para encher estádios ou, pelo menos, um de vários estádios da mente de quem sente as palavras que diz. A música negra na radiografia de uma mãe de família, a voz da contestação não perde a força por passar parte do tempo a mudar fraldas. Então e as mulheres? Essas, ela diz em “What a Woman Must Do” e denuncia as contradições da musa tornada objecto. Arrisca um delírio poético, desbragado, canta o protectorado victoriano a que as mulheres são votadas nos dias de hoje.

Tem uma postura relaxada, assumindo um controlo singular sobre as palavras que diz, aproveita-se do delay da melhor forma, sussurra quando podia gritar. As armadilhas de voz, os enredos da spoken word, a iluminura gráfica que enuncia a distanciar-se da cultura stand-up. A certa altura, dirige-se ao público e diz-se feliz por este tipo de relacionamento, ela a cantar e a tocar a alma de quem a ouve, para uma aventura a dois havia tempo mais tarde, naquilo que poderia ser entendido como uma de “One Million Ways to Burn”.

Numa das pausas entre os poemas, que durou mais de quatro minutos, Ursula lembrou a surpresa que sentiu ao testemunhar que a população prisional da cidade de que é nativa é maioritariamente negra. Quase no final da prestação, os três abandonam o palco uma e outra vez. Quando regressam, dão as mãos e inclinam-se a agradecer. Rucker recebe flores de um tipo engravatado. A sala ergue-se para aplaudir de pé. A poetisa não disse “Return to Innocence Lost”, um número que raramente apresenta ao vivo, dedicado ao seu irmão mais velho, agredido com um taco de basebol no Vernon Park e, depois, alvejado num beco.

No regresso a casa, o vislumbre de alguns sem-abrigo nas ruas da cidade, protegidos do frio com pedaços de cartão e, no sentido Baixa/Chiado–Alameda, um seropositivo a pedir esmola, a face pintada de vermelho e amarelo, a cabeça rapada no centro e coberta de feridas. A indigência mora aqui ao lado. Mas também nas canções de Ursula Rucker.

Helder Gomes
hefgomes@gmail.com
02/04/2004