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Pixies / The Vicious Five
Pavilhão Atlântico, Lisboa
20/07/2006


Entenda-se a badalada reactivação da vaca sagrada indie como forma de honrar as suas origens e o regresso dos Pixies pode até ser julgado à luz de simbolismos e contornos verdadeiramente sublimes. Sim, porque nunca estiveram tão próximos os métodos profissionais dos Pixies e das mulheres que Frank Black elevara a um panteão clássico com os relatos carnais do primeiro álbum Surfer Rosa. Ou seja, em ambos os casos sucede-se explicitamente uma troca de valores que se resigna a ser apenas circunstancial e dada ao saciar de prazeres. O oportunismo deste desfilar decadente é, aliás, dado globalmente adquirido, assumido pelos próprios (na atribuição do título Sell out à primeira digressão pós-milenar) e nem sequer isso abala a legitimidade à banda de Boston. O corpo – em sangue ou mutilado - é deles.

Uma banda que lançara ao lume o seu próprio nome – na compilação Death to the Pixies - não aspirará, a partir dessa altura, a mais que ser um acessório nostálgico e ténue mostra das raras qualidades que lhe valeram o mito. Enfim, cumpre-se uma hora e meia de gratificação pura entoando em coro o existencialismo fragmentado e irritadiço de Frank Black e reagindo aos primeiros acordes do baixo de Kim Deal como ao apito de Pavlov (quem aqui escreve, também reage). Contudo, sobrevivendo à ocasião com uma sensação de purificação e impressão errónea de que a ocasião remedeia o facto de não ter sido marcada a presença em gloriosos concertos passados (basta assistir à prestação de 1988 que trás o primeiro DVD de Pixies para entender o diferencial entre duas eras distintas). O que foi não volta a ser, mas o que é basta para emular eficazmente o que foi.

E, no lugar de respeitáveis mercenários, diga-se que os Pixies apresentam todos os argumentos necessários a um trabalho digno: a manutenção da formação original, a ausência de arrogância e uma vasta quantidade de êxitos de suporte (ao ponto de quase não se sentirem os altos e baixo ao concerto). Na verdade, aos Pixies falta apenas a motivação passional de quem ainda tem algo a provar – essa que ainda incita os Vicious Five a entregarem-se a mais de 100%. Falta, além disso, também perceber como se alia um passado de culto na 4AD e o consumo massivo de que actualmente são alvo. Isto porque, em termos de enquadramento social, não podiam estar mais distantes um Pavilhão Multiusos e as paragens recônditas onde ocorrem circunstâncias tão bizarras como aquelas que invocam: Blood your hand on a cactus tree (em “Cactus”, que aumentou um pouco a tempeatura) ou Uriah hit the crapper (o slogan inexplicavelmente sexy que tornou fervente e hostil a sequência “Dead” / “Tame”, que facilmente arrecadou o título de “momento da noite” e reacendeu a esperança a quem até ali foi na senda de uma genuinidade explosiva).

Genuinidade que durante um concerto de Pixies é como a maré: vai e vem, sobe e desce. Se descontarmos a insipidez em velocidade-cruzeiro que os assombrou na passagem pelo Parque Tejo em 2004, a modernidade Pixiana ainda nos ofereceu algumas réplicas memoráveis. No Atlântico, “Debaser” volta a ser esquizofrenicamente energética e capaz de fazer com que toda aquela turba se sinta de regresso ao liceu. “Is she weird?” conhece uma variação curiosa na guitarra de Joey Santiago. Em toada visionária, “Planet of Sound” confirma a infalibilidade das linhas de baixo mais viciantes que Kim Deal criou. “Where’s my mind?” soa quase a cumprimento de dever e leva a que Frank Black tropece um par de vezes na sincronização do refrão. “Vamos” serve de mote ao inevitável solo de Joey Santiago, que, por momentos, quase parece o filho mais novo a exibir uma habilidade única ao imponente pai, mãe e irmão ilusionista. Quando na cauboiada-punk “Nimrod’s Son” Franck Black grita The joke has come upon me., não anda muito longe da verdade. Ele que, logo de seguida, se chega a ocupar solitariamente de “Mr. Grieves” e prova que os TV on the Radio estavam certos quando decidiram fazer uma versão a capella da mesma. “Here comes your man” termina o concerto em tom de excesso dispensável.

Nem sequer deve incomodar a falta de interacção com o público ou ausência total de estímulos ao bairrismo lisboeta / patriotismo luso, mas pesa no fim a ideia de que não houve sintonia ou condições para que dois convivas se apaixonassem ou sequer alcançassem um plano comum de intimidade (a premissa maior de Surfer Rosa). Ausências essas que são quase requisitos para a conduta a manter numa noite (bem) passada com alguém experiente na sua arte – mas sem nada mais a acrescentar à sua vocação - entre quatro paredes pintadas a cal, que foram ganhando um tom encardido com o tempo. Mais do que nunca, um concerto dos Pixies exige um sentido prático a que normalmente as letras enigmáticas de Frank Black dificultam o alcance. O segredo deixou de o ser e agora sobra apenas um impulso saudoso que, tão breve quanto possível, deverá descansar para sempre em paz.

Antes dos Pixies, haviam subido ao palco uns Vicious Five que já mereciam por esta altura que mais de metade do Atlântico soubesse entoar os incendiários Hey! Hey! Oh oh oh oh... que abundam ao consistente Up on the Walls, que, à beira de cumprir um ano, ainda não exibe sinais de cansaço (em disco e em palco). Numa noite em que os cinco patifes lisboetas dispunham apenas de meia-hora (duração quase cruel), faz sentido todo o sentido ser-se-lhe aplicada a metáfora do desesperado que fala ao telefone de uma cabine sem mais moedas no bolso. A tal urgência situacionista que se falou por altura do lançamento do disco, continua bem presente na ausência de recuperação de fôlego que une “Fallacies and Fellatio” e “We did the West, let’s do the rest” (a prova de que os V5 são capazes de escrever canções de corpo inteiro) num só momento que, a julgar pelo condensado de energia, comprova os Vicious Five como uma das bandas a ter em alta consideração por cá. Houve, porém, algum paleio a mais por parte do vocalista Joaquim Albergaria – qual polícia corrupto de uma Miami entregue ao vicio -, mas compreende-se o dosear de esforços em véspera de ida para Vilar de Mouros. Contra-relógio, escutou-se ainda o novo single “The Smile on those Daggers”, apostado em apresentar a história da banda, que vem artilhado com dois riffs certeiros que já há muito prenunciavam o destaque que agora lhe é votado. Ainda é tempo de acordar, cinderelas desta geração.

Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
20/07/2006