Tinha acertado previamente com a Anita encontrarmo-nos antes ou depois do concerto de Belle & Sebastian, conforme a disponibilidade de cada um na hora anterior ao seu início. Por força de dilema em relação a se devia ou não deixar o carro estacionado em zona proibida dos Restauradores, resolvi-me por uma SMS que adiasse o rendez-vous para os momentos que se seguissem ao concerto. Fosse um condutor de apenas 18 anos e decerto que me teria resolvido muito mais depressa.
E assim foi. Sem a mínima vontade de partilhar com as câmaras da televisão a euforia acumulada durante as duas horas e tal de concerto, dirige-me sem demoras à cervejaria mais próxima do Coliseu, que, entretanto, ia libertando os que ocuparam pouco mais da sua metade. Surpreendentemente, a clientela optara nessa altura pela Boémia em vez da corriqueira imperial. Numa rápida invocação nostálgica, combinei mentalmente as imagens da Anita à beira da gaiola do seu pardalito, com a Tia Lúcia, no seu primeiro dia de aulas e na visita que a estreou no jardim zoológico. Entre essas descobertas de infância comuns a ambos e a Anita que ali estava sentada, havia uma enorme temporada para mim envolta em incógnita. Tinha sabido por amizades comuns que vivera uma relação conturbada com um namorado de mau feitio, tinha cumprido Erasmus em Barcelona e gozado de períodos de pura devoção aos Pavement, Weezer e Dandy Warhols. Trazia uma boina Kangol vintage, vestido branco e camisa de alças amarela com a palavra Hertz - a empresa que aluga carros - a servir de padrão. Sorria sem mostrar os dentes. Antecipou-se na questão inevitável:
Belle & Sebastian © Sérgio Felizardo |
- Curtiste?
- Muito. Não esperava que tivessem estado tão próximos do público, nem sequer a generosidade do alinhamento que incluiu um pouco de tudo. Não encontraria melhor programa para uma noite amena de Julho...
- Vê-los ao vivo elucidou-me em relação ao novo disco. Saí com a sensação de que pode ter sido o primeiro disco a celebrar as várias etapas de uma carreira.
- Reparaste em como as faixas verticais no palco alternavam entre imagens referentes a discos antigos e as respeitantes ao novo?
- Ya, Jonathan David e Tigermilk.
- A “Jonathan David” foi excelente. Quando cantam em simultâneo, o Stevie e o Murdoch quase parecem a versão disfuncional de uns Simon & Garfunkel surgidos de uma república de estudantes. A miúda que o Murdoch convidou até ao palco safou-se bem a dançar naquele ménage.
- Eles não arranjam forma de negar as raízes académicas. Chegaram a vacilar nos teclados...
- Mas ninguém reparou muito nisso. Não há astral que possa descer depois de assistir à dança robótica que o Stevie faz na “Electronic Renaissance”, que agora é duplamente retro. Recupera a new wave dos oitenta e também já acusa alguns anos na escala dos Belle.
A partir daí, actualizámo-nos em relação a todas as banalidades formais que se cumprem a cada vez que são mais de 2 anos a separar duas pessoas que um dia foram próximas. Podíamos estar ali como num café irlandês em Camden Town, onde decerto seria muito maior o contraste do nosso estilo com o dos freaks que inundam a feira ao sábado. Reparei que as palavras da Anita revelavam um entusiasmado renovado e redobrada paixão pela vida. Era bem provável que não se sentisse assim desde a sua primeira viagem de barco à vela. Perante um silêncio incomodativo, tratei eu desta vez de reacender o tópico da noite:
- Momentos altos?
- “Funny Little Frog”, sem dúvida. Quando o Stuart subiu aos teclados lá atrás, aquilo ganhou uma pinta gospel.
- Ya, um gospel para curar desgostos amorosos de fim de verão. Essa também é das melhores do novo. A “Sukie in the Graveyard” também. Quase se parece com o tema de um episódio do Scooby Doo realizado pelo Wes Anderson. Foi a primeira a levar muita gente a dançar cá atrás onde a plateia estava mais vaga.
- E a chama de flamenco com que o Stevie incendiou completamente “Le Pastie de la Bourgeoisie” já perto do fim? Foi lindo. O Stuart ainda dedilhou os acordes iniciais da “Fox in the Snow”...
- Não houve essa, mas houve aqueles clássicos inevitáveis. “The State that I Am in” e a “The Boy With the Arab Strap”. Achei simpático ter dedicado a “The State that I Am in” ao pessoal cota sentado nas bancadas. Eu estava por lá e senti-me cúmplice nesse momento.
Belle & Sebastian © Sérgio Felizardo |
A troca de impressões sucedia-se com uma descontracção anacrónica. A Anita perguntou destemidamente
:
- E que achaste de Pop Dell’ Arte?
- Pareceram-me um pouco descontextualizados, mas cumpriram. Aquele loop de entrada era quase Swans...
- Aquele crooning decadente consome-me.
- Um crooning que também pode ser um hopelandish de latrina.
- O Peste ainda tem aquele carisma maldito.
Antes de nos despedirmos, alcançámos uma constatação consensual.
- O Chris e o Richard pareceram-me pouco energéticos. A idade também já pesa.
- De facto, parecem-se cada vez menos com aqueles putos louros de Glasgow que víamos nas capas dos discos...
- Também tu deixaste de ser aquela miúda que toda a gente conhecia pelas primeiras experiências em equitação, montanhismo e artes circenses.
- O tempo passa trivialmente.
No regresso a casa, senti que o encontro servira essencialmente para, em conjunto, nos desenvencilharmos daquele pesar sinistro que ameaça o receio de ver a idade escalar uma casa decimal. Aliviava-nos de alguma forma a ideia de poder contar com quem também chora no fim de um drama eficaz ou com a cumplicidade de quem se lembra com a mesma exactidão das séries exibidas no Agora Escolha. Juntos, havíamos conquistado o direito de estar estupidamente felizes por ter escolhido a repetição de um ritual em vez do grandioso happening que se sucedera numa cidade bem próxima da capital. Sem receios ou arrependimentos.