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Kanye West - Cool Jazz Fest
Jardim do Marquês de Pombal, Oeiras
17/07/2006


Kanye West tem o mundo a seus pés. Afirmou-se, há dois anos, como uma voz a ouvir. Nunca foi grande rapper, sempre foi melhor produtor (já o era há anos e anos antes disso, trabalhando quase sempre ao lado de Just Blaze para nomes como Jay-Z, Talib Kweli, Alicia Keys, Ludacris, etc.) do que MC. Mas sempre esteve consciente disso. Assim, ciente das suas limitações como rapper, sempre soube como tirar o maior partido da sua voz. Junte-se isso a um magnífico ouvido para tirar da música dos outros as melhores melodias e a forma mágica como junta tudo em estúdio e sabe adaptar isso à sua voz e tem-se a fórmula para o sucesso. Pode também envolver (ou não), samples acelerados de gente como Aretha Franklin, Chaka Khan, Etta James, Gil Scott-Herron ou Otis Redding, numa técnica que pode ser tão boa quanto má (como no exemplo máximo do super-irritante Akon e do seu “Mr. Lonely”).

Kanye West © Francisco Nogueira

Para além da música, sempre houve em West um desejo de se impor e de se mostrar como é. E uma auto-confiança auto-imposta que contrasta com o seu começo de puto esquisito e introvertido que começou a fazer beats para os outros e de quem toda a gente se riu quando começou a rimar. Que não haja dúvidas, West era um daqueles putos que levavam muita porrada na escola e se refugiava na música. Do “George Bush doesn’t care about black people” à capa da Rolling Stone vestido de Jesus, West sempre quis ser o maior artista do mundo. Tinha um sonho e quis cumpri-lo: tocar no céu. E, surpreendemente, conseguiu. Não o fez como o seu amigo Jay-Z, não diz “cheguei, cheguem-se para lá, sou o melhor, não se metam comigo senão levam”, disse “cheguei e sou o melhor, vou conseguir” (sem a parte da violência e de dizer mal de toda a gente a que Jay-Z entretanto renunciou). E conseguiu.

Kanye West © Francisco Nogueira

Então aqui temos, um dos maiores artistas do mundo a dizer “The roc is in the building”, a falar de edifícios num espaço ao ar-livre. É estranho ver como Kanye West passou os últimos dois anos, desde a edição de College Dropout, a tornar-se um entertainer de alto calibre. Só a própria figura dele impõe respeito, de camisa preta, calças pretas e, ao peito, o famoso colar de ouro com uma representação de Jesus feita pelo recém-imprisionado Jacob the Jeweler. Tem os seus próprios movimentos, a forma como pára e se põe de lado a dançar e a rimar, a forma como incita e motiva o público e, especialmente, a forma como consegue provar todas as suas mais-valias. Traz, com ele, uma secção de cordas e uma harpa, dois cantores e um DJ, A-Trak, para mostrar o que vale.

Kanye West © Francisco Nogueira

Começa com “Diamonds”, numa introdução um pouco longa de cordas que só depois revela qual é o tema de que se trata. E, maior do que a vida, Kanye entra em palco e, enquanto diz a frase de ordem (“Throw yo’ diamonds in the sky if you feel the vibe”),pede a toda a gente para pôr os dedos em forma de diamante, o símbolo da editora Roc-A-Fella. O público não percebe bem, mas isso é acessório. Toda a gente conhece a canção, as canções, mesmo que a remistura (com a participação de Jay-Z) seja bem melhor, mesmo nas rimas de Kanye. Esse é um dos problemas de, basicamente, todos os concertos de hip-hop. Num género feito de promiscuidade de participações, será sempre difícil transpor isso para o vivo (basta ver o número de colaborações de Jay-Z desde que se “reformou” da carreira a solo há três anos, é assustador). É incomportável trazer-se todos os convidados, isso só poderá acontecer em ocasiões especiais. Porque os cantores são substituíveis, os rappers não.

Kanye West © Francisco Nogueira

O som não está muito bom, ao princípio, muita coisa demasiado alta, e Kanye ainda não entrou na sua melhor forma como rapper e parece que vai necessitar de um hypeman (alguém que sublinhe as suas frases e o ajude a fazer-se entender). Mas, à segunda ou terceira canção, já está perfeitamente confortável e não precisa disso para nada. Há um desfilar de êxitos de The College Dropout e Late Registration, e toda a gente os conhece. As suas fraquezas como rapper não invalidam que quase todas as suas frases tenham as suas peculiaridades, o seu flow fraco não invalida que arranje soluções criativas para a forma como diz as coisas, tornando virtualmente tudo o que diz em rebuçados pop de alto nível.

Como se evidenciou no início como produtor, Kanye tem a impressão de que deve mostrar algum do seu trabalho. Lá no meio, “Can I Live?”, entre outras faixas de Jay-Z, foram passadas do nada sem apresentação. Já com apresentação, um bocado depois, “You Don’t Know My Name”, de Alicia Keys, ou “Get By”, de Talib Kweli, bem como “Encore” e “Izzo (H.O.V.A.)” (“that’s the anthem, get yo’ damn hands up), também de Jay-Z. No final do tema de Alicia Keys, cantou um bocado, á primeira até se safou bem, mas quis demasiado, não que seja um mau cantor, mas não é propriamente aí que está a sua vocação. A surpresa maior foi quando decidiu mostrar canções que o influenciaram. Entre outras, Al Green e A-Ha. E nota-se mesmo que é um fã tremendo das canções, finge que canta todas as palavras, sabe as letras todas e mostra-se verdadeiramente entusiasmado com elas.

Kanye West © Francisco Nogueira

A banda começa a tocar “Eleanor Rigby”, dos Beatles, e rapidamente passa para “Crazy”, dos Gnarls Barkley. É interessante ver como “Crazy”, uma das melhores canções do ano, resulta muito mal sem a voz peculiar e estranha de Cee-Lo Green, e como soa banal quando cantada por um homem e uma mulher perfeitamente anónimos e genéricos. Depois disso, a banda toca “Bittersweet Symphony” dos Verve, e Kanye, que entretanto tinha saído, volta ao palco para um freestyle claramente ensaiado em que menciona Portugal. Em termos de produções, também passa, lá no meio, “Overnight Sensation”, de Twista, e “Brand New” de Rhymesfest (conhecido por ter co-escrito “Jesus Walks” com West). Temas como “Hey Mama” ou “We Don’t Care” são enormes ao vivo, como todas as suas melhores canções, mas algo falha em “Slow Jamz”, um dos singles mais mediáticos dele, aquele que lhe trouxe mais fama. Não é à toa que há duas versões, uma como single de Kanye West e outra como single de Twista. É que a canção é tanto de Twista e do seu flow ultra-rápido quanto de West. E é ainda mais de Jamie Foxx, cuja voz estava lá, samplada. Mas quando se retira muitos dos seus pormenores, a canção não soa assim tão bem. Falta o falsete deliciosamente foleiro de Foxx a dizer os nomes de todos os artistas que mais bem servem para fazer bebés, em rimas parvas como “Sly & The Family Stone, let’s get the party on” ou “Al Green, aaaaaaah, Al Green, aaaaaaah”. Também não ajuda o facto de a própria voz de West estar samplada e A-Trax insistir num irritante jogo de pára-arranca para um Kanye West sorridente.

Kanye West © Francisco Nogueira

Há quem diga que Kanye West se espalha ao comprido quando quer ser épico. Nada mais errado. Há algo de verdadeiramente fascinante, emocionante e grande (mesmo para um agnóstico) em “Jesus Walks”. Com samples de um coro gospel, com vozes loopadas a cantar “pom-pom pom-pom-pom”, é uma das canções maiores de West, e uma experiência avassaladora ao vivo. E contraria a teoria de que West só funciona bem com outros rappers (mesmo que tenha sido co-escrita por Rhymefest, a sua voz é a única que se ouve lá). É realmente enorme e avassaladora, a interpretação e a canção. “Through the Wire” também resulta muito bem, a história de alguém que teve um acidente e transformou-o em canção, samplando velozmente Chaka Khan e rimando com o flow peculiar de quem tem o queixo danificado. Interpreta-a com uma perna às costas, sem problemas, imitando na perfeição a forma única como rima na gravação.

Kanye West © Francisco Nogueira

O espectáculo acaba num clímax enorme, “Touch The Sky”, produção de Just Blaze (a única faixa nos seus dois discos que não foi produzida por West) que retira imenso de “Move On Up”, de Curtis Mayfield, mas faz com que toda a gente se esqueça da canção por não haver o refrão em falsete. Mesmo não estando lá Lupe Fiasco (afinal, foi esta a canção que o mostrou ao mundo pop, mesmo que “Kick, Push” também seja um single magistral, não chega aos calcanhares da exposição de “Touch The Sky”), funciona perfeitamente. Kanye diz que quer tocar no céu, e quase que toca. Porque é, neste momento, um dos maiores artistas do mundo, tem toda a gente a seus pés, e é por isso que se pode safar com as maiores arrog|ancias de sempre. Engana-se numa parte e pede para os músicos recomeçarem. E recomeçam, mas mesmo do princípio. Depois diz que não vai repetir o concerto todo, está demasiado cantado, e volta a “Touch The Sky”. E toca mesmo no céu. É que Kanye West, mesmo grande, enorme, maior do que a vida, continua a ser aquele puto esquisito apaixonado por música que vê aquilo como um escape e que promete à mãe que um dia vai ser grande e vai pagar-lhe tudo o que ela quiser. Ainda continua extremamente entusiasmado com tudo isto, e sabe dar aos outros o que querem dele. É um entertainer confiante, alguém que trabalhou muito para chegar onde está (basta ver pelo VH1 Hip-Hop Honors 2006, programa do VH1 dedicado ao hip-hop onde West interpretou, de forma surpreendentemente competente, um tema de Notorious B.I.G., notório não só por ter sido assassinado mas também por ter um dos flows mais complexos e peculiares de que há memória), e sabe perfeitamente que o merece. Isso é confundido com arrogância, mas ele não deixa de ser um misto de certezas e incertezas sobre ele próprio, um artista que vive da dicotomia entre a auto-confiança e a insegurança. E o trabalho levou-o a tocar no céu e a crescer de um rapper estranho para um artista maior do que a vida, uma figura avassaladora e dona de um grande, enorme, e surpreendente espectáculo. Dos beats lançados por A-Trak (que é um óptimo DJ com muito boa técnica) aos arranjos de cordas (que dão mais do que seria de esperar à música), o puto que era nerd e se tornou na epítome de cool mostrou realmente o que vale e confirmou-se não só como um enorme produtor e bom rapper, mas também como um animal de palco. Finalmente, espera-se, o hip-hop chegou a Portugal. Ou talvez não. De qualquer forma, é a prova de que ainda vale a pena tentar.

Kalibrados © Francisco Nogueira

Antes, os Kalibrados, uma crew angolana, trouxeram hip-hop misturado com refrões r'n'b sem grande personalidade mas muita garra e força. Inexplicavelmente, tocaram dois temas (que, curiosamente, tinham ambos "Ka-li-bra-dos" como elemento) e foram-se embora. Antes e depois de Kanye West, um best of dos A Tribe Called Quest fez a delícia dos fãs. O que é curioso, tendo em conta que os A Tribe Called Quest sempre foram uma banda de discos e não de êxitos.


Rodrigo Nogueira
rodrigo.nogueira@bodyspace.net
17/07/2006