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Festival Summercase 06
Boadilla del Monte, Madrid
14-15/07/2006


Não parece existir tal coisa como “Festivais a mais em Madrid”, ou sequer em Espanha. Chega o Verão e multiplicam-se os festivais assumidamente de época (ou então não) e há até quem se afirme veraneante por oposição directa ao Inverno e ao Wintercase. Na sua primeira edição de sempre, o festival Summercase (organizado pela Sinnamon), a acontecer na localidade de Boadilla del Monte, em Madrid, e, simultaneamente no Parc del Fòrum, em Barcelona, entra no panorama dos festivais espanhóis com um certame de peso. Não só por se realizar nas duas maiores cidade espanholas (as bandas que tocavam no dia 14 em Madrid faziam-no em Barcelona no dia seguinte, e vice-versa), mas também porque a enorme quantidade de bandas obrigou a que o Summercase fosse um festival de quatro palcos simultâneos, denominados Terminal O, E, S e N. Dois palcos maiores colocados lado a lado mas com a distancia suficiente para o som não se sobrepor, e outros dois palcos em duas tendas de tamanhos consideráveis.

Felizmente ou infelizmente a situação ainda não acontece muitas vezes em Portugal (talvez com a excepção do Festival Sudoeste), mas o Summercase é um daqueles festivais em que é necessário andar de mapa na mão e fazer por vezes difíceis escolhas de selecção. Mas como há que começar por algum lado, os britânicos The Paddingtons foram as primeiras vitimas de uma espreitadela rápida, uma visita que deu para conferir o punk rock persistente mas não deu para aferir totalmente o seu interesse. As movimentações em palco deram indicações de uma energia próxima à de uns Minutemen, com as devidas distâncias. Depois do final do concerto dos The Paddingtons, atravessar o recinto para espreitar os The Feeling no Terminal E e logo perceber que nada de interessante se passava no Terminal E. Olhando para a biografia dos britânicos apetece dizer que nunca deveriam ter abandonado a vida de banda de versões – e daí talvez nunca o tenha feito. Pop rock redundante com reminiscências dos anos 70, canções bizarras provenientes de histórias não menos descabidas. A certa altura contava-se no palco a história do disco, gravado no sul de Inglaterra, onde se incluíam idas ao supermercado para comprar álcool barato que depois servia de inspiração para canções resultantes de embriaguês (“Rosé”). Resumindo, os The Feeling parecem uma paródia, uma piada mal conseguida. Algo a evitar.

Difícil de evitar eram os Dandy Warhols há não muito tempo quando se fazia zapping na televisão. O hit “Bohemian like you” estava sempre por lá para destruir a saúde mental mesmo à mais forte das almas. Agora que esses tempos acabaram, uma rápida inspecção ao Terminal O deu para perceber que os Dandy Warhols não serão assim tão maus quanto se poderia pensar. Pelo menos não incomodam por aí além quando se degusta as suas canções num Festival de sol e cerveja. Mais para mais, os Dandy Warhols despacharam os singles e hits (alguns mais suportáveis que outros) quase todos no inicio da actuação.

Mas pouco depois era altura de mudar de Terminal para, logo ali ao lado, assistir à actuação dos Divine Comedy de Neil Hannon, sempre perfeitamente aprumado e com aquele ar de quem tem uma farpa pronta pronta a ser disparada. O Sr. Hannon tem disco novo, Victory for the Comic Muse, um veiculo mais para as suas histórias mais ou menos assentes na terra. E começou pelo início. O início de Victory for the Comic Muse, entenda-se. Ouve-se "If There’s a war I’ll spleep with you before you get killed". É a quase cabarética “To die a Virgin”, onde Hannon mostra prazer em misturar a guerra com o sexo (e até o amor), enquanto lembra a voz de David Bowie. A luxuosa “Diva Lady” (também do novo disco) mostrou pela primeira vez o porquê de estarem oito pessoas em palco – legitimidade conferida. Durante a mesma canção, Neil Hannon aponta para o helicóptero que entretanto rasgava os céus e pergunta-lhe, seja lá quem for, se quer dançar.

The Divine Comedy © Angela Costa

Quando perguntou ao público quem possuía uma cópia de Liberation em casa, as mãos eram muitas no ar, facto que deixou Neil Hannon visivelmente surpreendido. Desse mesmo álbum de estreia de 1993 retirou “Queen of the South” para satisfação de muitos. De Fin de Siecle sacou “Generation Sex” para contentamento de muitos mais. Havia mesmo no público quem segurasse orgulhosamente um cartaz onde se podia ler: “Wonderhit for english speakers”. A pop meia barroca de “A lady of a certain age” trouxe tudo de novo ao último disco e a familiar “Mother Dear” – apresentada como uma canção para as mães - manteve-nos por lá, com um extra: um banjo. As repescagens continuaram com um momento de especial beleza: “Eye of the needle” lembrou-nos Regeneration de 2001 e algumas ideias chave: “I know that it's wrong for the faithful to seek it / But sometimes I long for a sign, anything / Something to wake up the whole congregation / And finally make up my mind.”

Mas como “Neil Hannon” parece não conseguir estar muito tempo sem gracejar ou mostrar o seu humor refinado, “Our Mutual friend” surge para contar uma história – na verdade tragicómica de um triângulo amoroso. E foi mais ou menos por aqui que Neil Hannon se mostrou mais activo, gesticulando, encenando. Em “Charge”, mistura-se de novo o sexo com a guerra, com direito a imitação de vozes soul por parte de Neil Hannon lá para o final. O homem continua em forma, Neil Hannon continua em forma. Pop redentora, pop bem humorada, pop substancial, pop inteligente ou até sofisticada, pop.

A certa altura do concerto dos Divine Comedy, Neil Hannon perguntava ao público quais eram as suas escolhas para o resto da noite e deixou a sua: Rufus Wainwright. O norte-americano começava a sua actuação pouco depois com uma surpresa desagradável. Sozinho em palco, ao piano ou à guitarra, Rufus Wainwright não foi capaz de evitar que o som que vinha dos outros palcos não se sobrepusesse às suas canções. Foi por isso mesmo que confessou a certa altura que se sentia no Fellini Show e que estava à espera que os palhaços chegassem. Chegou até a confessar que não ouvia aquilo que estava a fazer, mas continuou. Para além de temas como “California”, “The Art Teacher” ou “11:11”, “Cigarettes And Chocolate Milk”, Rufus Wanwright interpretou ainda “Hallelujah” e algumas canções novas que confessou ter escrito há pouco tempo. E porque a família não tem fim, Rufus fez-se acompanhar pelo menos um par de vezes de uma das suas irmãs. Não Martha, mas sim Lucy que apesar de cumprir não foi capaz de mostrar ter uma voz distinta. Tentaram proteger Rufus Wainwright e dar ao concerto alguma intimidade ao marcar o seu concerto para a maior das duas tendas, mas esqueceram-se de a isolar. Nota mental: em Festival de Verão, pop despida e intimista necessita de isolamento extra.

Rufus Wainwright © Angela Costa

Já perto do fim, a meio de uma qualquer canção, Rufus alertava: “Here comes New Order”. Tinha razão. Com direito a volume muito elevado, os New Order tinham acabado de aterrar no Terminal O. A primeira prova séria de que o Summercase de devia fazer de três dias foi o momento em que se teve de escolher entre os New Order e os Happy Mondays – o mesmo deve ter sentido o jovem que se passeava orgulhosamente pelo recinto com uma camisola da Factory. Feita a escolha, urge dizer que os New Order não são uma banda; são duas. E fazem questão de o mostrar. Não foi surpresa alguma então que a actuação se foi fazendo de temas dos Joy Division e dos New Order: de um lado “Love Will Tear us apart” (aos soluços, às três pancadas, e não foi a única), “Transmission”, do outro lado “Regret”, “Temptation”, esta última já quando os New Order haviam encostado as guitarras para darem prioridade as batidas. Na verdade, e talvez porque o peso fosse demasiado grande, os New Order ‘despacharam’ as “covers” de Joy Division na primeira meia hora de concerto. Muitos devem ter ficado com a sensação que Joy Division sem Ian Curtis é o mesmo que chinês com talheres. Houve ainda temas do último disco e, como não poderia deixar de ser, “Blue Monday”, em modo turista. Ainda assim os New Order estiveram sempre melhores quando apresentaram os temas historicamente assinados como New Order. A passagem por Power, corruption & Lies e o belíssimo momento de “Temptation” (“Oh, you've got green eyes / Oh, you've got blue eyes / Oh, you've got gray eyes / And I've never seen anyone quite like you before”) foram os momentos mais altos.

Alguns passos ao lado era possível ver os Primal Scream de Bobby Gillespie e perceber logo ali, nos primeiros momentos, que neste momento o que lhes vai na cabeça é acima de tudo o rock ‘n’ roll. De resto isso já se podia perceber em Riot City Blues, o último disco. Foi em traços gerais uma actuação plana, sem altos nem baixos, com potencial destaque para o final quando os Primal Scream se fizeram acompanhar por duas senhoras ‘afro’ nas vozes. Mesmo assim quem esperava algo como uma representação em palco de Screamadelica saiu muito provavelmente dali com as expectativas goradas. Apesar de não terem conseguido uma grande actuação, os Primal Scream mostraram que a experiência tem de valer alguma coisa. E experiência é algo que os senhores que se seguiram, os Razorlight, não possuem. Foi no mesmo palco que os Razorlight, apesar da evidente energia, terão conseguido convencer muito pouca gente. Simplesmente porque ainda existem monges copistas mais originais que estes britânicos.

Razorlight © Angela Costa

Terminada a noite (pelo menos para alguns, já que a noite continuava nas tendas), e olhando para trás registava-se uma sucesso gigantesco: conseguir escapar aos Keane e às suas baladonas rock FM formatadas. Erro de casting? Tiro no pé? O certo é que ainda só se tinha cumprido um dia de festival e com pena ainda não havia a registar uma grande actuação, um concerto memorável – o melhor do dia foram mesmo os Divine Comedy. Nada de perder esperanças. Era altura de apontar para Barcelona e dizer: mandem-nos os vossos que estes já vão a caminho. Chegados a Madrid aqueles que no dia anterior tinham actuado em Barcelona, estava tudo preparado para começar aquele que era o último dia do primeiro festival Summercase. Ao olhar para o cartaz era possível adivinhar que o segundo dia de festival era aquele mais susceptível de abraçar mais público. Em quantidade e em diversidade. Rumando ao Terminal O encontrávamos pouco depois das 8 da noite os Dirty Pretty Things, o resultado entre os ex-The Libertines Carl Barat e Gary Powell e Anthony Rossomando e Didz Hammond. O resultado final, esse é pouco interessante. Muito barulho, muito berro, pouca música. Rock incaracterístico, a precisar de rumo. Não dá sequer para bater o pé, nem quando tocam ao de leve o reggae dos Clash. Os Dirty Pretty Things são um carro mal oleado e a precisar de revisão. O melhor talvez seja apagar tudo e começar do zero. Se a falta de inspiração fosse punível, os Dirty Pretty Things não iam presos mas pagavam multa.

No terminal, antes da actuação esperada dos Belle & Sebastian actuavam os representantes espanhóis da banda escocesa, o duo Astrud, que por vezes também gostam de ser os Smiths de Espanha. Em concerto apresentam-se como um trio bateria, baixo e guitarra e para este concerto específico anunciavam 12 canções em 45 minutos. E porque Performance é ainda um ‘objecto’ relativamente recente (foi editado em 2004 pela Sinnamon), foi precisamente nele que se baseou a performance dos espanhóis: “Vamos a un bar”, “Masaje”, “Caridad” e “He Vuelto” foram alguns dos temas a ganhar vida em palco. As três últimas são também alguns dos melhores temas, junto com “Quedamos así”, Smiths chapado para quem tem saudades. Em espanhol, entenda-se, como qualquer tema vindo dos Astrud.

Twilight Singers © Angela Costa

Exigia-se depois o interromper da actuação dos Astrud para espreitar na tenda/Terminal S os Twilight Singers de Greg Dulli, senhor dos Afghan Whigs. Este é o seu novo veículo, para o rock de arestas limadas que nas mãos do heavy smoker Greg Dulli tem sempre algo de bastante sedutor. Não será tão atraente como eram os Afghan Whigs mas anda lá perto. E por falar em arestas bem limadas, chegava ao Summercase a pop delicodoce dos Belle & Sebastian para provocar uma enchente nas imediações, ou seja, ao redor do Terminal E. A grande e bonita família alegre subia a palco para fazer levitar sonhos, agora com um disco capaz de se colocar ao lado de Tigermilk e The boy with the arab strap, depois de um disco menos conseguido como Dear Catastrophe Waitress. The Life Pursuit, fortemente influenciado pelos anos 70, é um disco com selo de qualidade e confiança, o que se reflecte instantaneamente quando as suas canções são apresentadas ao vivo: “Funny Little Frog”, por exemplo, soa tão fresca como qualquer canção dos Belle & Sebastian dos 90’s. Teclados e sopros maravilhosos, guitarra pelo mesmo caminho.

Belle & Sebastian © Angela Costa

Retrocederam bastante no calendário para trazer “Get Me Away From Here I'm Dying” e “Electronic Renaissance”, sempre comandados por Stuart Murdoch. “To be myself completely”, onde ressaltam os teclados e o violino campestre, e “For the price of a cup of tea” trouxeram-nos de volta a The Life Pursuit mas “If you’re feeling sinister” levou-nos a 1996 e ao álbum com o mesmo nome. Até ao final ainda se havia de ouvir canções como “Le Pastie de la Bourgeoisie”, “I'm A Cuckoo” (com direito a espectáculo de Stuart Murdoch que desceu do palco e se aproximou do público), “Jonathan David” (altura em que subiram duas meninas ao palco para dançar), “White Collar Boy” e, como não podia deixar de ser, “The Boy With The Arab Strap”. No final, e bem feitas as contas, ficava a memória de uns Belle & Sebastian em forma, situação para a qual o belíssimo último disco muito contribui. Estes Belle & Sebastian estão de bem com o passado e com o presente, e isso nota-se.

Uma curta passagem pelo Terminal O dava para absorver alguns minutos da actuação de uns Super Furry Animals a viverem de Love Kraft, o mais recente álbum dos britânicos. Deu tempo para ouvir a belíssima “Zoom”, a fazer lembrar uns Pink Floyd de Atom Heart Mother nas vozes, nos teclados, na grandiosidade. Deu tempo para respirar algum do psicadelismo que pairava no palco, muito bem expresso nos dois ecrãs que se encontravam dos lados do palco que mostravam imagens e formas coloridas. Pouco depois era altura de seguir para a tenda que se conhecia por Terminal S para seguir a actuação dos Sigur Rós. Mesmo antes da actuação dos islandeses já a tenda se encontrava cheia e, dizia-se depois, a rebentar pelas costuras de tal maneira que havia público para lá dessas mesmas costuras. A verdade é que aparentemente ser-se fã de Sigur Rós é uma ocupação a tempo inteiro – as camisolas da banda podiam-se ver aqui e ali, e havia até quem tentasse reproduzir as letras fictícias que Jónsi canta. Ao início, uma tela branca impedia o público de ver o que se estava a passar em palco. E foi assim que o concerto se viu até que “” (de Takk), o primeiro tema dos Sigur Rós chegasse ao seu fim. Digamos que 80% da actuação dos islandeses se fez de Takk, disco que ao vivo ganha uma força quase sobrenatural.

Sigur Rós © Angela Costa

Na verdade, os Sigur Rós assinaram uma actuação bem superior àquela que celebraram por exemplo no Coliseu do Porto em 2005, uma actuação sublime, sem falhas nem momentos mortos. No final foram buscar a ( ) um dos temas que melhor se portam ao vivo, a última dos temas sem titulo do disco, conhecido pelo seu final majestoso. Depois da saída de palco voltariam mais 3 vezes para agradecer (duas com as Amina e restante tripulação e uma só com a banda base), mas em nenhuma delas pegaram nos instrumentos para um encore que se exigia. Mas nem isso manchou uma actuação notável, uma que lembrou aos presentes a força e poder dos islandeses. Assim vale a pena acreditar.

E agora algo completamente diferente. O show surrealista dos Daft Punk, num palco igualmente surrealista a provocar uma festa não menos surrealista. Os Daft Punk acabam por ser uma das escolhas mais surpreendentes do Summercase… ou então não. Não quando no cartaz constavam os nomes de Chemical Brothers e de Fatboy Slim. E era este o trio responsável pela dança no festival. Ainda no que aos Daft Punk diz respeito não faltaram obviamente temas como “One more time” e “Around the world” que transformaram o recinto do Summercase numa discoteca gigante. Pouco depois, logo ali ao lado entravam os Massive Attack em palco para fazerem uma espécie de promoção ao primeiro disco de grandes êxitos da banda de Bristol, Collected. Foi mesmo assim que o concerto se desenrolou, apesar da ausência de alguns temas obrigatórios. Mezzanine esteve muito bem representado (em temas como “Risingson”, “Teardrop”, “Angel”), não faltou “Karmacoma” nem Elizabeth Fraser e muito menos Horace Andy. Mas foi Deborah Miller que protagonizou um dos melhores momentos da noite: “Like a soul without a mind / In a body without a heart / I'm missing every part”, repetia na inolvidável “Unfinished Sympathy”. E depois disto já nem era necessário um final algo maçudo e enfadonho, mesmo assim incapaz de apagar a memória de “Unfinished Sympathy”. Não foi nem de longe nem de perto uma boa actuação. Foi uma actuação em modo piloto automático, que teve no máximo três ou quatro bons momentos. E é preciso fazer mais do que isso quando se sobe a um palco com o título Massive Attack.

Massive Attack © Angela Costa

No mesmíssimo local onde haviam atacado os Daft Punk havia de atacar Fatboy Slim para se repetir a festa, especialmente ao som de “Right Here, Right Now” e “Funk Soul Brother”. Foi aí mesmo que muitos decidiram despedir-se do Summercase, embora a festa tivesse continuado nas tendas. Fica a ideia de que um Summercase de três dias não teria sido descabido. Afinal de contas, esta reportagem teve de passar ao lado de actuações como as dos Happy Mondays, Bell Orchestre, Cut Copy, Hope of the States, The Long Blondes, Adam Green, Trabant, Maxïmo Park, The Spinto Band, entre muitos outros, e de espreitar apenas outros tantos nomes. É duro, mas alguém tem de o fazer. A olhar pelo aparente sucesso desta primeira edição do Festival Summercase, será com toda a certeza seguro dizer que para o ano há mais.
André Gomes
andregomes@bodyspace.net
14/07/2006