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Rodrigo Leão - Madrid EnCanto 2006
Teatro Albéniz, Madrid
01/06/2006


Ao sair na estação de metro do Sol, deparamo-nos com uma cenário eminentemente turístico: dezenas de lojas de souvenirs, o caos a todas as horas do dia, milhares de pessoas, o célebre urso de Madrid a ser alvo de fotografias a toda a hora e uma grande quantidade e variedade de carteiristas profissionais que ameaçam a segurança do turista mais desatento. Mas há mais no Sol do que isso; há por exemplo a recatada e certeiramente chamada calle Paz (na constante confusão do Sol esta é uma das ruas que lembra um oásis), mais precisamente no seu número 11: o belo Teatro Albéniz, que infelizmente é hoje em dia espécie em risco de extinção. Ao que parece, o teatro com selo Comunidade de Madrid corre o risco de fechar. No edifício mesmo ao seu lado, exibia-se um pano que pedia a salvação do Albéniz, aparentemente querido de grande parte dos madrilenos. Uma das razões da adoração a este teatro da capital pode muito bem ser o Madrid EnCanto, que no ano que corre celebra a sua 6ª edição. E fá-lo com a presença de dois dos mais sonantes nomes da música portuguesa: Mísia, que tratou de inaugurar o certame no dia 30 de Maio numa actuação com o distintivo Drama Box, e Rodrigo Leão, ainda com Cinema na bagagem, e alguns convidados especiais. É sobre a sua actuação, com casa perto da enchente (com provável divisão estatística entre portugueses e espanhóis), que este texto se debruça.

E com uma primeira constatação, que não terá o elemento surpresa que a abertura de um segundo parágrafo costuma reservar: Rodrigo Leão é como um maestro para os músicos que o acompanham: Maxim Doujak no violoncelo, Viviena Toupikova no violino, João Portela na guitarra, Luis San Paio na bateria, Luis Aires no baixo eléctrico e, como não podia deixar de ser, Celina da Piedade no acordeão. Estes são os músicos fixos em semicírculo; depois é ver Ana Vieira colocar-se no meio e na frente e dar voz aos temas criados pelos senhores em palco, seja em português do Brasil, seja em inglês, seja em francês (por exemplo “La Fete”) ou mesmo até em Latim. Não se sabe se terá sido da língua ou do alongar do concerto, mas parece que Ana Vieira começou um pouco presa e que só para a ‘segunda’ parte do concerto e em francês mostrou realmente o valor da sua voz. Mas antes desse soltar da vocalista mais presente durante a actuação, surgiu em cena outra voz, conhecida por outras paragens mas também parte de Cinema: Beth Gibbons, inconfundível na sua escultural magreza, pose junkie, jeito negligé, e voz ‘queimada’ e chorada – a voz dos Portishead. Da famosa banda de Bristol não se ouviu nenhum tema, mas a sua presença em palco (a primeira) havia de trazer agradável surpresa: “Show”, do seu disco a solo com Paul Webb, aka Rustin' Man (Talk Talk), intitulado Out of Season, com peculiares arranjos pelas mãos de Rodrigo Leão e do seu ensemble. Logo a seguir foi a vez de ouvir a quase hipnótica “Lonely Carousel”, de Cinema que no refrão é exactamente aquilo que o título sugere.

O outro convidado anunciado era o pianista italiano Ludovico Einaudi que além de acompanhar Rodrigo Leão e restantes músicos em alguns temas da autoria do português, teve ainda a oportunidade de apresentar um tema do seu último disco com a devida retribuição. Uma das surpresas agradáveis da actuação foi a de, para além dos convidados em si, o público ter tido a oportunidade de ouvir canções da autoria desses mesmos convidados renascerem ali com outros arranjos. Foi isso mesmo que voltou a acontecer A apresentação dos músicos ‘fixos’ em palco evidenciou o carinho que o público sente por Celina da Piedade, claramente a mais aplaudida e ovacionada dos presentes. Um pouco atrás (mas não muito) ficou a violinista Viviena Toupikova, cujo talenso goza de grande destaque nas composições de Rodrigo Leão; o pizzicato fica-lhe bem, o vibrato ainda melhor.

“A Comédia De Deus”, por razões óbvias, é o tema que toda a banda desfruta mais visivelmente: há sorrisos que se trocam, há abanos de cabeça constantes. É uma animada viagem que todos parecem sentir agrado em fazer. Além deste e dos temas cantados por Beth Gibbons (que no encore havia ainda de apresentar “Tom the Model”), outros momentos altos incluem a delicadíssima e terna “Cinema”, “Ave Mundi”, um tema com Ludovico Einaudi no piano e Maxim Doujak no violoncelo no abrir do primeiro encore (sozinhos em palco mostraram que por vezes menos é mais), “A Casa” e “Pasión”, primeiro em versão instrumental no decorrer do concerto e depois algures nos encores e na voz de Celina da Piedade, momento obviamente extra especial para os espanhóis que se encontravam no público. Pela duração do concerto (a rondar quase as duas horas), Rodrigo Leão conseguiu rever Cinema quase na totalidade e ainda, cuidadosamente, oferecer uma actuação em jeito de best of que obviamente muito agradou a quem marcou presença. No final o rescaldo era muito positivo. A 6ª edição do Madrid Encanto continua até ao dia 17 de Junho, mas já sem mais presenças portuguesas. No entanto, o último reflexo de alma lusa foi verdadeiramente suficiente para deixar a sua marca em Madrid.

André Gomes
andregomes@bodyspace.net
01/06/2006