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Kings of Convenience
Aula Magna, Lisboa
29/04/2006


EstĂŁo dois tipos nĂłrdicos em palco. Um mais calmo e reservado, mas com um ar mais extrovertido, outro mais extrovertido mas com ar de calmo e reservado. Um usa camisa, o outro uma camisola por cima de uma t-shirt cor-de-rosa e Ăłculos de massa grandes e grossos, que cobrem muita da sua cara e lhe dĂŁo muito do seu ar deliciosamente desadequado. A sala estĂĄ cheia – esgotada, atĂ© – e nĂŁo hĂĄ cadeiras vazias no anfiteatro. AtĂ© pelo contrĂĄrio. As pessoas ficam em pĂ© ou sentam-se nas escadas ou onde podem para poderem ver os Kings of Convenience. Noruegueses, nĂŁo lançam um ĂĄlbum hĂĄ dois anos e conseguem movimentar muita gente em Portugal Ă  sua segunda vinda.

O tipo mais calmo e reservado é Erik Glambek BÞe, o tipo extrovertido é Erlend Øye e, apesar de o primeiro parecer ter uma maior responsabilidade na escrita de cançÔes dos Kings of Convenience, nunca ninguém parece lembrar-se do nome dele, visto Erlend Øye ser a estrela. E isto não é só por ter um nome mais fåcil de decorar. Tem a ver com o carisma que não lhe devia ser natural, mas é. Toca guitarra (vão ambos alternando entre guitarra solo e rítmica) e canta maioritariamente segundas vozes, faz uns solos aqui e ali. Se perdesse o outro, Erlend Øye seria ainda uma estrela. O contrårio não é necessariamente verdade, mesmo sendo Erik Glambek BÞe um óptimo escritor de cançÔes e tendo uma óptima voz, é com Øye que brilha.

Kings of Convenience © Carin Abdulá

As duas vozes complementam-se de forma quase perfeita, como as de Paul Simon e Art Garfunkel se complementavam nos anos 60 e 70. Simon & Garfunkel Ă©, aliĂĄs, o primeiro nome que vem Ă  cabeça ao ouvir os Kings of Convenience. SĂŁo os representantes dos mesmos do sĂ©culo XXI, mas tĂȘm uma personalidade prĂłpria. PorĂ©m, daqui a uns anos, se eles tiverem acabado, Erlend Øye continuarĂĄ a ser uma estrela, como Paul Simon continuou a ser uma estrela. E jĂĄ tem provas disso, atĂ© certo ponto, mas muito longe daquilo que faz com a sua banda, dentro da mĂșsica de dança, e atĂ© distante do disco de remisturas dos KoC, Versus, tanto no seu disco a solo - Unrest - nas suas colaboraçÔes com os Röyksopp ou como DJ.

Começando com “You Don’t Understand”, passando por “Love is no Big Truth”, “Cayman Islands”, ambos vĂŁo desfilando algumas das cançÔes que compĂ”em Riot on an Empty Street, o seu Ășltimo ĂĄlbum, de 2004, de forma competente e profissional, com solos de Øye de vez em quando. HĂĄ alguma comunicação entre a banda e o pĂșblico, especialmente quando chegam pessoas atrasadas e Erlend Øye explica quais cançÔes jĂĄ tocaram. A atmosfera, segundo ele, começou nervosa mas estĂĄ a tornar-se calorosa. O riff de “I Don’t Know What I Can Save You From” começa, alguma parte do pĂșblico, no seu desrespeito, começa a bater palmas, mas Ă©, felizmente, abafado por uns “shhh” milagrosos de algumas boas almas. A canção soa mais alegre do que em disco, sem soar Ă  versĂŁo remisturada que teve algum sucesso entre nĂłs.

Erlend Øye ainda continua a ser o tipo que toca guitarra e ajuda a criar harmonias de vozes belĂ­ssimas que soam estupidamente bem, sem se evidenciar demasiado, mas isso estĂĄ prestes a mudar. HĂĄ um numeroso pĂșblico excitado e hĂĄ um profissionalismo quase exemplar da banda que retira Ă s suas cançÔes a faceta intimista, e a certo ponto as duas guitarras acĂșsticas deixam-se da mĂĄxima Quiet is the New Loud que Ă© o nome de um dos discos do duo e revelam-se altas. Com sotaque nĂłrdico, a banda diz ao pĂșblico que o pĂșblico soa como se os amasse. Agradecem esse facto, dizendo que isso sabe bem. Segue-se “Winning a Battle, Losing the War”, e Øye pergunta se o pĂșblico sabe cantar. Faz com que toda a gente cante a parte final da canção, com mĂŁos no ar, qual maestro. Pede mais luz no palco, jĂĄ que, apesar de a iluminação nĂŁo estar mĂĄ para quem vĂȘ, parece estar mĂĄ para quem estĂĄ em palco. PedirĂĄ menos luz no futuro, quando esta estiver reflectida nos seus Ăłculos.

Kings of Convenience © Carin Abdulá

BĂže senta-se ao piano e canta “Gold in the Air of Summer”, voltando a levantar-se depois. Øye pergunta ao pĂșblico se tem alguns pedidos, o pĂșblico tem muitos e Øye diz que se sente esquizofrĂ©nico. Cantam “Singing Softly To Me”, a canção deles que mais deve Ă  bossanova, Erlend, sem guitarra nos braços, pede uma toalha e dança de forma totalmente desajustada, na sua dança tremendamente prĂłpria que começa a evidenciar o animal de palco que realmente Ă©. No refrĂŁo, quando Ă© a sua vez de cantar “I couldn’t hear you” e “I couldn’t see you”, cobre os ouvidos e os olhos e faz gestos, qual crooner. NinguĂ©m sente a falta do trompete da versĂŁo gravada, mas hĂĄ um idiota qualquer do pĂșblico que insiste em cantar essa parte. É algo um pouco deprimente. Sem a parte final de “I’m in love again, it’s too late now”, passam logo para “The Girl From Back Then”, a segunda parte da canção. Øye senta-se ao piano para solar, procede a levantar-se e a estalar os dedos, pedindo ao pĂșblico para fazĂȘ-lo e repreendendo o pĂșblico quando alguns idiotas insistem em bater palmas, pedindo mais uma vez para estalarem os dedos. Vai dançando, andando, saltitando de um lado para o outro, faz com que toda a gente e cante e acaba no chĂŁo, com as mĂŁos para cima, num final triunfal. Sai de cena. Erik canta “Corcovado”, de Tom Jobim, algo que faz algum sentido depois do que veio antes, num portuguĂȘs do Brasil improvisado. Pede ajuda ao pĂșblico, canta “a felichidade”, as pessoas batem palmas a meio, quando o tipo ainda nem parou de cantar. Erlend aparece e faz um solo de trompete de boca, ou seja, emula o som do trompete com a boca e faz gestos para parecer que estĂĄ a tocĂĄ-lo. Surpreendentemente, soa muito bom. Erik diz que Ă© estranho estar em frente a 1400 falantes de portuguĂȘs a cantar algo em portuguĂȘs que nĂŁo sabe o que quer dizer, apesar de conhecer a tradução inglesa que lhe disseram que nĂŁo Ă© bem uma tradução. Diz que Erlend Ă© o campeĂŁo mundial de trompete de boca.

“Homesick” traz a frase que se adequa perfeitamente Ă  banda, quer se estivessem a referir a eles prĂłprios ou nĂŁo, “two soft voices rendered in perfection” epitomiza quase tudo. Chamam convidados, Davide Bartolini, baixista e produtor francĂȘs que produziu o Ășltimo disco deles, e Tobias Hett, alemĂŁo que toca viola. “Stay Out of Trouble” traz a instrumentação do disco e nĂŁo soa nada mal, atĂ© pelo contrĂĄrio. As pessoas estalam os dedos, e hĂĄ alguĂ©m no pĂșblico que consegue, para alĂ©m de estalar os dedos fora de tempo, nĂŁo manter nenhum ritmo perceptĂ­vel, como se isso nĂŁo fosse um dos actos mais bĂĄsicos do mundo. “Know-How” safa-se bem sem a voz de Leslie Feist que canta no disco, com o pĂșblico a fazer a sua parte, mesmo que o baixo comece por nĂŁo soar lĂĄ muito bem. Erlend conta uma histĂłria sobre como Ă© impossĂ­vel, quando se vai ao Lux, ir para o cais ao pĂ© do rio (confunde o Tejo com o mar) engatar miĂșdas, e que Ă© tal e qual o que se passa na sua terra natal, Bergen. O governo e as organizaçÔes estĂŁo a tirar Ă s pessoas os melhores espaços para se apaixonarem e isso nĂŁo pode ser.

“The Boat Behind” Ă© uma canção nova que fala de dois possĂ­veis amantes que nĂŁo se vĂȘem durante anos e voltam a encontrar-se. “Singing oh-oh, I can never belong to you” Ă© o refrĂŁo. As pessoas batem palmas no sĂ­tio errado, quando pensam que a canção acabou e nĂŁo acabou. Em “Misread” as linhas de baixo de Davide Bartolini ganham destaque, a canção tem um arranjo algo diferente, dois anos depois da sua versĂŁo gravada. Øye pede ao pĂșblico para se levantar e dançar, cantam “Toxic Girl”, as pessoas batem as duas palmas seguidas que aparecem na gravação em alturas totalmente diferentes, numa mania irritante de emular o que ouvem em disco. E Ă© agora que Erlend Øye se revela o maior entertainer geek de sempre. Pede ao pĂșblico para descer do anfiteatro para as doutorais, para encher o palco, esquecer os seguranças, que se toda a gente for ninguĂ©m os pode parar, e hĂĄ uma invasĂŁo do palco durante “I’d Rather Dance”. Toda a gente estĂĄ Ă  volta da banda, e as pessoas batem palmas fora do tempo, Erlend Øye vai para cima do banco do piano e faz a sua dança patenteada, mexe as ancas quando canta “so let your hips to the talking” e demonstra divertimento genuĂ­no quando canta “gettin’ into the swing”. As palmas estĂŁo finalmente dentro do tempo e, em pĂ©, Øye sola no piano. A banda vai-se embora e hĂĄ o sentimento de que nada do que virĂĄ depois poderĂĄ comparar-se ao que acabou de se passar.

Kings of Convenience © Carin Abdulá

Mas a banda volta, progressivamente, e Erlend anuncia, depois de pedir ao pĂșblico para se sentar, que quer cantar uma canção para uma rapariga muito especial que estĂĄ muito longe. É “Waiting in Vain”, de Bob Marley, numa versĂŁo surpreendentemente boa que quase nada deve Ă  original. Abana a cabeça, anda Ă s voltas, numa pose com tanto de geek quanto de cool. Anuncia mais uma canção, tira a camisola, revelando a t-shirt cor-de-rosa, pede para o pĂșblico estalar os dedos e cantam “Little Kids”. No meio do seu andar dançante e dos seus gestos, começa a mexer as ancas e pede para Tobias voltar, dizendo que Ă© preciso um solo. Amelodicamente, Tobias sola e Erlend Øye pede-lhe por tudo para tocar uma melodia. Atira o microfone ao ar, anda com o fio Ă s voltas, e tudo acaba com Erlend Øye a dar ao pĂșblico frases para cantar, depois de ter passado os Ășltimos momentos a dançar e a bater palmas, Erik Glambek BĂže tambĂ©m a mexer-se, mas muito menos, e os outros todos num jogo de viola e baixo. Com o pĂșblico nas mĂŁos, e triunfalmente, a banda vai-se embora e ninguĂ©m quer saber agora se tinha lugar ou nĂŁo cĂĄ em cima, querem saber que estiveram lĂĄ e que valeu a pena.


Rodrigo Nogueira
rodrigo.nogueira@bodyspace.net
29/04/2006