bodyspace.net


Black Dice / Panda Bear
Galeria Zé dos Bois, Lisboa
21/04/2006


PANDA BEAR

Talvez por ser inevitável a subtracção de 20 anos à idade de quem convive sem reservas com a bonança que oferece a música do Animal Collective e as suas ramificações, presenciar uma actuação de Panda Bear – um quarto do colectivo - resulta inevitavelmente num processo de rejuvenescimento que me devolve a uma locomoção orientada pelas teclas “O P Q A M” de um ZX Spectrum, à ilusão de que os distantes continentes exóticos são palmilháveis através de um ecrã a preto-e-branco de um velho televisor Grundig e invariavelmente a um estado abençoadamente despreocupado de quem não tem muito a transpor além do que impõem os pixeis à medida que o jogo avança.

Por efeito desse recuo sentimental, aproxima-se muito a actuação a que se presta o autor Young Prayer da lembrança que resta de um clássico de plataformas que me é afecto: Jack, the nipper 2 (a consultar em http://www.ysrnry.co.uk/articles/jackthenipperii.htm), onde uma criança descendia até a um meio selvático e a partir daí procurava a forma mais traquina de se evadir dessa hostilidade. O mecanismo é, pois, semelhante ao que orienta a actuação de quem se apresenta em palco munido apenas de voz e um sequenciador de loops e efeitos sonoros. Ao que se sabe, nem o próprio Panda Bear tem uma noção arquivista do que “sampla”. Fá-lo como que movido pelo experimentalismo instintivo e despreocupadamente lúdico da criança que se encontra perante um número limitado de recursos – mantras indianos, dub folheado, paisagens nocturnas que projectam a certeza de que continuam a ser inseparáveis os grilos e a terra que lhes serve de habitat. Durante meia hora, passa a Zé dos Bois a servir de berço com as dimensões de um paul. O souvenir palpável dessa sensação já anda por aí na forma de um deslumbrante single - I’m not / Comfy in náutica que Bear gravou por Lisboa, onde reside e nos prenda com momentos tão memoráveis como o da noite de 21.

Miguel Arsénio

BLACK DICE

Tim Mosley nasceu em 1971 nos Estados Unidos. Em Virginia Beach, tocou numa banda com Chad Hugo e Pharrell Williams e, por acaso qualquer do destino, aos três homens foram dadas mãos de Midas, ou seja, tudo aquilo em que tocaram depois disso tornou-se ouro. Recentemente, as mãos de Midas não têm funcionado assim tão bem, nem para os Neptunes (a dupla de produção de Chad Hugo e Pharrell Williams), mais obviamente, nem para Timbaland (o nome artístico de Mosley), mas muito menos vezes que para os seus ex-colegas. Superprodutor, Timbaland é altamente influente e uma das forças motrizes da música pop do final dos anos 90 e princípio dos anos 2000.

Timbaland tanto pode influenciar uma das mais recentes produções dos Neptunes, "For The Nasty", do rapper Q-Tip (dos recentemente reunidos A Tribe Called Quest), com o seu patenteado ouvido para ir buscar elementos à música do mundo (pense-se na polirritmia e na sitar indiana de "Get Ur Freak On", de Missy Elliott, com quem colabora há anos, apesar de não ter estado muito presente em The Cookbook), como outros artistas, por exemplo, Panda Bear, membro dos Animal Collective ou os Black Dice. Lá no meio, entre a batida, o baixo e o teclado dub/reggae cobertos por uma nuvem de ruído de Panda Bear, podia-se ouvir o tratamento que Timbaland dá à música do mundo, por aquilo que soava como uma tabla. Claro, era só um puto branco com uma máquina a mexer em botões e a fazer vocalizações estranhas, manipuladas, gravadas, sampladas por cima, mas o fantasma do génio pop estava lá por cima.

Diz-se que, de alguma forma, Tim Mosley ouviu "Cone Toaster" dos Black Dice, aquele tema que é basicamente assim: "Crr, crr, css, css, cxx, cxx, crr, crr, css, css, cxx, cxx". Consta que gostou bastante, e, esse simples acto de gostar ou não gostar de algo, de aprovar algo, legitimizou, de alguma forma, o gosto de toda a cultura/cena noise pela música urbana de raiz negra, o que é perfeitamente natural, visto tratar-se de uma cultura que vive e se alimenta da procura de novos sons e de maneiras de reagir à música, com graus variáveis de sucesso, sendo que o mesmo acontece com a música urbana, especialmente o hip-hop e o r'n'b, só que com uma exposição mediática consideravelmente maior e movimentando-se num espaço mainstream e não underground.
Portanto, aqui estão três gajos, pouco lavados, vindos de Brooklyn, aprovados pelo Timbaland, distribuídos pela EMI (através da DFA de James Murphy), a esgotar o espaço por excelência do underground lisboeta, com uma enorme muralha de amplificadores atrás, cheios de máquinas e com o desejo de destruir aquilo tudo. O ar está irrespirável, fruto das pessoas que teimam em fumar ali dentro, mas ainda há espaço para movimento, não é como o que aconteceu ainda duas semanas antes com os Linda Martini. As luzes apagam-se, há projecções atrás da banda, que não distraem mas disfarçam o facto de não ser um espectáculo extremamente apelativo do ponto de vista visual, criando um ambiente para a coisa, algo que não tinha acontecido antes com Panda Bear apenas minutos antes. Porque é assim que os Black Dice funcionam em disco de longa duração, se alguém se distrai a meio ou começa a falar com outra pessoa perde o fio à meada e a concentração e pode de repente começar a pensar "O que é que se passa aqui?", portanto a entrega tem de ser total. Não que não haja momentos em que isso acontece, mas não acontecem com tanta frequência quanto seria a ouvir aquilo em disco.

A música varia entre as paisagens sonoras de Beaches and Canyons, que evocam justamente tanto praias quanto desfiladeiros, grandes paisagens naturais americanas, e seguem à risca o que Fursaxa uma vez disse sobre a banda, que está sempre à procura de beleza num mundo fodido (sic), ou entre batidas que devem mais à música de dança que ao hip-hop de Timbaland, sendo essa a base do último disco da banda, Broken Ear Record, um disco de música de dança gloriosamente "fodido". Logo ao primeiro tema, devido ao poder do som da banda e da parafernália electrónica que a sustenta, o quadro da sala vai abaixo, o primeiro tema pára a meio, resolve-se o problema de alguma forma, a banda desculpa-se (a única vez que comunica com o público). Há melodias repetitivas tocadas na guitarra, entre batidas fortes e a espaços descontroladas, com explosões de barulho, muralhas de som e ruído, numa experiência tanto física quanto auditiva. Apesar do calor intenso, as movimentações corporais e manifestações físicas são obrigatórias na reacção imediata às batidas e enquanto os três homens, dois nas máquinas e nas vocalizações e um na guitarra, se vão mexendo como podem, todos dançamos. A chuva cai lá fora, cai mesmo no tecto da sala, mas cá dentro está demasiado calor e, entre o suor, todos dançamos. Mas não sabemos como fazê-lo, por isso reagimos como podemos, de forma imediata e totalmente descoordenada. O tecto da sala parece estar a cair, gotas de água caem mesmo junto ao palco, mas dançamos. Porque não há outra coisa a fazer.

E o glorioso apocalipse dura, culminando com "Motorcycle", tema que fecha Broken Ear Record e que devia passar todos os dias na RFM ou no Rádio Clube Português, ali, entre o Demis Roussos e os ABBA, ou entre os U2 e os Nickelback, guitarra repetitiva, com um riff que quase se pode assobiar, batida simples e eficaz, voz a fazer "woo", "woo", e é o final perfeito para a celebração perfeita do fim do mundo. A banda sonora do Inferno que nos faz dançar, mas não acaba ali. Ainda falta um bocadinho.

Consta que o set foi quase igualzinho ao de Berlim uns dias antes, só mudou a sala e o quadro ter ido abaixo. Mas isso não altera nada o que se passou. A veracidade não interessa assim tanto. É exactamente como Tim Mosley, o génio pop, que trabalha à comissão. Faz beats para quem lhe paga mais. Isso não altera em nada a sua qualidade e o seu mérito e não tira nada às obras-primas que já fez no passado, que acabou de fazer (o novo single com a Nelly Furtado é bem bom) e que ainda está para fazer. Os Black Dice, a melhor banda de música de dança da actualidade, estiveram cá, numa celebração intensa do início ao fim (ao contrário do que se tinha passado, em Agosto, no Sudoeste, comprovado in loco, e no Porto, segundo relatos, incluindo desta casa). Tim Mosley é fã. Nós também.

Rodrigo Nogueira