bodyspace.net


XII Termómetro Unplugged
Teatro Sá da Bandeira, Porto
01/04/2006


No dia seguinte à final constou na cidade que um homem de ar tímido, munido de uma guitarra e de um reco-reco, tinha vencido o Termómetro Unplugged. O que, ainda por cima, era verdade. O artista, com um nome de código saudosista – Yesterday –, deve ter saído do Teatro Sá da Bandeira com uma sensação de inesperado David que derrotou vários Golias numa noite só. Quem esperava um plural, enganou-se… Afinal, tratava-se de um projecto a solo, e que nem ocupava assim tanto espaço em palco.

Muito antes, no início da noite, ouvimos da boca do sempre sábio Álvaro Costa a justificação pela ausência de um seu co-apresentador: “O Rui Reininho foi detido ontem à noite em Santos Pousada”. A acrescentar à eloquência, lembremos que esta final se realizou no enganoso dia 1 de Abril…

Adiante que os Sépia queriam pôr toda a gente a dançar, recorrendo à mistura do jazz com a voz feminina carregadinha de soul – às vezes, demais – e piscando o olho ao funk. “Gimme your love”, pedia a enérgica vocalista ao público e ao júri, certamente, não sejamos ingénuos. Apelava-se às palmas, tentava-se aquecer a noite logo na abertura do espectáculo, mas o público não estava muito para aí virado. Há muito tempo que penso – e a personagem Tony Wilson do filme 24 Hour Party People concorda comigo – que os longos solos, sejam de voz, saxofone ou guitarra, dão muito mais prazer a quem os toca do que a quem os ouve. A certa altura já se olhava para o relógio, a perguntar: “Mas o tipo não começou já ontem a tocar?...”. A vocalista acabou por ser considerada a melhor da noite, na altura dos prémios.

Olivetree © João Pedro Barros

A música dançável cedeu o seu lugar ao revivalismo grunge dos Inflow. O problema é que passou muito pouco tempo desde que Kurt Cobain se calou de vez e, diga-se, não há muito por onde explorar o filão que fez dos Nirvana uma das maiores bandas do mundo nos anos 90. Portanto, mais do que revivalismo, a música desta banda soava a alguém que ficou preso algures no início da década passada, num baú cheio de camisas de flanela aos quadrados e, entretanto, no seu walkman, não ouviu mais nada a não ser os acordes pouco variados do grunge. Em palco, repartiu-os por três guitarras e nem mesmo a versão da já muito gasta “Mr. Jones”, dos Counting Crows, escapou à tendência. Imunes a tudo isto, os Inflow pareciam ter arrastado consigo – do mesmo baú – uma legião considerável de fãs que entoavam facilmente as letras de algumas canções. Para o júri, foi deles o melhor baixista desta final.

Timidamente, pé ante pé, como que para testar a resistência do palco, eis que nos surge, alheio a tudo o que estava prestes a acontecer, o homem da noite. O homem de “ontem”… Para que o público não estranhasse a sua solidão, o nome por detrás de Yesterday começou por esclarecer então que o projecto era a solo. E avançou com a sua guitarra, seguida de perto pelo reco-reco, por caminhos de terra batida, como se estivesse na praia, rodeado de amigos, ou no quarto, sozinho. Como um cantor de intervenção dos anos 70, Yesterday, timidamente indie, viajou de olhos fechados, muitas vezes, sem vergonha de mandar calar os – poucos – instrumentos e apoiar-se apenas na voz. Foi buscar os Kings of Convenience para interpretar, entre falsetes e sentimentos verdadeiros (e com as palmas como única bateria), a geometria de “Parallel Lines”. Sem medo de que as linhas saíssem tortas… Acrescentou ao primeiro lugar o prémio para a melhor versão.

Os Born a Lion apresentavam a particularidade de terem, como vocalista, o homem responsável pela bateria. A sua atitude rock’n’roll ficou bem patente, logo a abrir, com o ritual de rugidos – à leão – roucos e excêntricos do responsável pela voz. É mesmo de rock’n’roll que se trata, daquele que bebe dos anos 70 a dureza dos sons por cozinhar. Conduzindo um Cadillac de 67, como sugere uma das suas letras, conseguiram agitar as audiências. Solidarizaram-se com os Black Rebel Motorcycle Club na pergunta “Whatever happened to my rock’n’roll?”. Irónico. Eu diria que ele esteve sempre presente, enquanto os Born a Lion estiveram em palco. Acabaram por levar a medalha de bronze, no fim, e o prémio para melhor guitarrista.

Manel Cruz © João Pedro Barros

Antes que a noite acabasse, os Olivetree, de aparência “tá-se bem/eleitores do Bloco de Esquerda”, percussionistas de excelência, propuseram uma música de dança sem electrónica pelo meio, respeitando as regras do concurso e tentando dar uma sopradela nas pistas demasiado densas de tecno, house, etc. As influências latino-africanas, os ritmos seguindo os misteriosos caminhos do transe, acabaram por transformar “Mama Papa”, dos Repórter Estrábico, numa versão semi-irreconhecível. Mas seria sem dúvida pior se se tivessem colado ao original. A voz aqui era apenas instrumento de sopro, quase sempre grave, num praguejo contra qualquer coisa que não se descortinava facilmente. A boa coordenação rítmica valeu-lhes, no fim, o segundo lugar no concurso.

Faltou ouvir os Cooltura, que faltaram, segundo a organização, “por questões pessoais”.

O regresso do bandido

Enquanto esperávamos as decisões, um homem da casa, ex-líder de um projecto que saiu do berço do Termómetro Unplugged, veio mostrar o que anda a fazer sozinho. Manuel Cruz, depois dos Ornatos Violeta e dos Pluto – estes ainda em actividade, quando os outros fazem bastante mais falta –, veio acompanhado da guitarra e de alguns pequenos instrumentos artesanais. Deu-nos uma amostra do que pode ser, mais ou menos, o projecto Foge Bandido, uma vez que, como ele próprio afirmou, o álbum conta com a colaboração de muitos outros artistas e instrumentos. Digamos portanto que assistimos a uma versão condensada do aguardado trabalho. A guitarra saltitante, as letras, por vezes cruas, mas sempre agridoces, a voz arrastada e muito tripeira, lembraram-nos o quanto Manuel Cruz faz falta no panorama musical português. É um dos mais castiços músicos do nosso país e, sem dúvida, um dos melhores letristas. “Eu queria ser ninguém” reduziu-o a uma solidão que a sombra projectou. Antes, “Diz-me o porquê dessa canção tão triste”. Talvez por não ter obtido resposta, talvez que o tema o deixe nervoso, parou a meio, pediu autorização ao público e voltou ao princípio. E depois de quatro ou cinco músicas, voltou ao fim. Aguarda-se a sonoridade em disco.


Carlos Luís Ramalhão