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4ª Festa do Jazz
Teatro São Luiz, Lisboa
31-03-02/04/2006


À quarta edição da Festa do Jazz alargou-se a agenda e a ambição. Com uma programação assumidamente nacional, a “Festa” pretende transformar-se no grande evento do jazz português. Sem trazer grandes novidades ou músicos de peso, com a excepção de alguns convidados, esta edição apresentou um cartaz à partida pouco apelativo. Mas mais do que pela música, valeu pelo encontro e pela celebração.

Na noite de sexta-feira coube a Bernardo Sassetti a honra de abrir o festival e o pianista apresentou o disco Ascent. Depois do fabuloso espectáculo na Culturgest em Outubro do ano passado, Sassetti voltou a exibir a sua música luxuosa, a navegar entre a pulsação do jazz e a sensibilidade da música clássica, tendo Carlos Barretto e Alexandre Frazão como parceiros fundamentais para o equilíbrio. Seguiu-se o Ensemble Festa do Jazz, um combo reunido por iniciativa do director artístico da festa, o saxofonista Carlos Martins. Neste sexteto esteve em particular destaque a secção rítmica (Bruno Pedroso e o galego Paco Charlin); Perico Sambeat mostrou bom nível e a presença de João Moreira, apesar de fugaz, foi brilhante no pedal de efeitos. Os jovens do Quinteto da Escola do Hot Clube, vencedores do concurso de escolas de jazz do ano transacto, encerraram no Jardim de Inverno as festividades de sexta-feira. Desembrulharam standards tocados com distinção e provaram a qualidade da formação técnica da escola do Hot. Não trouxeram nada de novo, é certo, mas a partir da meia-noite o povo do jazz já estava mais interessado em chegar até ao bar do que propriamente em ouvir novidades.

No sábado, o duo Paula Sousa / Demian Cabaud (piano e contrabaixo) cumpriu simpaticamente a função de dar música ao Café dos Teatros durante a tarde. Já o quinteto Wishful Thinking, que actuou no Teatro-Estúdio Mário Viegas, foi do mais fresco que se viu na festa. Liderado pelo saxofone de Alípio Carvalho Neto, tenho Johannes Krieger (trompete) e Alex Maguire (piano) como principais cúmplices, o quinteto assenta as suas bases nas linhas seguras do jazz, mas logo parte para o improviso. Esta é uma das mais interessantes propostas a emergir em território nacional (apesar de três músicos terem nacionalidade estrangeira) e agora aguarda-se com ansiedade o disco que estará prestes a ser editado via Clean Feed. Na mesma sala actuaram também o Quarteto de João Falcato e o Quinteto de Mário Santos – concertos aos quais não foi possível assistir, dado que vários eventos decorriam em simultâneo. Na sala principal Joana Rios mostrou competência e reverência (demasiada) na interpretação de clássicos de Ella Fitzgerald. Apesar da qualidade dos acompanhantes - Bruno Santos, Nelson Cascais, André Sousa Machado, Pedro Moreira e Claus Nymark – o concerto não passou do morno. Com um disco editado há já bom tempo (2004) e sem novidades na calha, não se percebe a inclusão do trio T.G.B. como cabeça de cartaz. Previa-se uma repetição sem grande chama da fórmula já conhecida, mas o trio Frazão/Delgado/Carolino trocou as voltas. Apresentou algumas novidades e algumas músicas mais velhas soaram um pouco diferentes – em parte graças ao (bendito) abuso de efeitos por parte de Mário Delgado. Com alguma surpresa, acabou por superar as expectativas. Seguiu-se aquele que era, provavelmente, o momento mais esperado da festa: o Sexteto de Mário Franco com David Binney propôs uma das formações menos convencionais com a agravante de incluir um convidado de peso. E foi no convidado que as atenções se centraram: David Binney arrastou o sexteto para uma actuação cheia de energia. Para o fim da noite ficou o BabyJazz Septet. Este surpreendente grupo de miúdos (e miúdas!) estrangeiros residentes no Algarve mostrou saber tocar como gente grande e, apesar da duvidosa validade do conceito artístico, teve a habilidade de conseguir fazer a festa (como poucos).

No domingo, a dupla Diogo Vida / Rodrigo Monteiro carregou a responsabilidade de animar o Café dos Teatros. No Teatro-Estúdio o LA Jumping P, do trombonista Lars Arens, mostrou-se interessante nas boas explorações de temas originais entre o trombone, o contrabaixo Moreira e o saxofone Zé Maria. O concerto que se seguiu, quarteto de André Matos, passou despercebido, aparte de um ou outro pormenor individual. A festa prosseguiu com o programa “Lisboa Que Amanhece” de Paula Oliveira / Bernardo Moreira na Sala Principal, ao qual se seguiu o solo do pianista João Paulo Esteves da Silva no Teatro-Estúdio – que o director artístico Carlos Martins acabaria por classificar ao fim da noite como um “dos melhores de sempre da história da Festa”. Tal como aconteceu com o T.G.B., também Laurent Filipe trouxe um projecto já antigo para o palco principal - o disco A Luz, editado em 2004, foi o mote do espectáculo. Secundado pela guitarra de Mário Delgado e pelo piano de Rodrigo Gonçalves, o trompete com surdina e efeitos electrónicos de Laurent Filipe desenvolveu melodias e esboçou improvisos com muita garra. No último tema, "A Luz”, Filipe trocou o trompete pelo fliscórnio e a melodia belíssima ficou a ecoar na cabeça de todos. O Estardalhaço Brass Band comprovou que, como há dias me dizia um amigo, a malta do jazz tem pouco jeito para arranjar nomes. Mas musicalmente, que é o que interessa, correspondeu à sua designação. Na melhor tradição de New Orleans, sete instrumentos de sopro juntaram-se a uma bateria para fazer a festa. Recriaram músicas bem conhecidas em arranjos peculiares e, pelo meio de muitos solos, quem se ficou a ganhar foi o grupo – individualmente destacou-se o estrambólico sousafone do Sérgio Carolino, instrumento pouco lembrado ao qual Carolino soube injectar vivacidade. O Estardalhaço foi responsável por uma das actuações mais animadas e teve como ponto alto a interpretação funkadélica de “Chameleon” de Herbie Hancock. O Seminário Permanente de Jazz de Pontevedra, que desenvolve um exemplar trabalho de formação em terras galegas, trouxe a proposta SPJ + João Guimarães. Juntando os melhores alunos galegos ao jovem saxofonista português, fez-se uma homenagem à música de Charlie Parker e foi um fim de festa cm muito bebop.

No Jardim de Inverno houve o tradicional desfile das escolas de jazz, um palco privilegiado para a revelação de talentos - mas tornava-se impossível acompanhar os espectáculos todos por haver outros eventos em simultâneo. O júri elegeu este ano a ESMAE do Porto como melhor combo e o prémio de melhor instrumentista foi dividido entre Ivan Silvestre e João Pedro Brandão (ambos ESMAE) – já o ano passado estes prémios teriam sido merecidos. Houve ainda prémios de reconhecimento às escolas do Barreiro e do Hot Clube e também menções individuais: Vânia Fernandes (voz, Madeira), Zé Maria (sax, Hot Clube) e Marcos Cavaleiro (bateria, ESMAE).

E assim terminou o fim-de-semana onde o jazz lisboeta fez a sua festa. Entre tantos músicos e concertos é pena que a abrangência estilística não seja grande, oferecendo muitas vezes “mais do mesmo”. Focando-se unicamente no jazz de cariz tradicional e mainstream, deixa de lado outros músicos que seguem correntes estéticas e linguagens diferentes - e isto enquanto vários músicos tocam duas ou três vezes durante o fim-de-semana. Caso se afaste de algum “hotclubismo” e as portas se abram um pouco mais, esta poderá ser a grande festa que ambiciona. Há talento, iniciativa, criatividade e diversidade. Tudo depende das vontades, o futuro está em aberto.


Nuno Catarino
nunocatarino@gmail.com
02/04/2006