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The Legendary Tiger Man
Galeria Zé dos Bois, Lisboa
25/12/2005


Ainda não são 11 da noite. Chove em Lisboa, chove a sério como já não chovia há uns tempos. É a noite do dia de natal (não a noite de natal) e, na Rua da Barroca do Bairro Alto, as pessoas fazem fila até cá fora para entrar na Galeria Zé dos Bois. Para um espaço onde os concertos não costumam, de todo, começar a horas, a maior parte das vezes por causa do público que só começa a entrar depois das 11, isto é, no mínimo, estranho. Para já há uma fila, depois as caras que se vêem não são frequentadoras habituais da Galeria. Porque é que, de todas as noites, as pessoas hão-de escolher esta para ir lá?

A resposta é simples. Na noite mais sagrada de todas, as pessoas querem ver Paulo Furtado como The Legendary Tiger Man, alguém que faz a música menos sagrada de todas. A banda de blues de um homem só condensa em voz, guitarras, kazoo, bombo e prato de choque (ou mais, era impossível ver) anos e anos de tradição dos blues e do rock’n’roll sujos. É isso que as pessoas querem ver. Então, numa noite fria e chuvosa, entre riffs sujos e palavras hereges, com o calor humano e toda a energia vinda do palco, o suor começa a tomar conta das pessoas.

Paulo Furtado entra em palco com o seu ar de português mais americano de sempre (ou será de americano mais português português de sempre?), óculos de sol, camisa e gravata, e toda aquela pinta que mantém desde os Tédio Boys. Durante a próxima hora e tal, debitará com força o seu repertório, clássicos dos blues, temas originais, com níveis crescentes de pujança e rock’n’roll. Se no início tudo parece igual, quase sem sal, no final já não há problemas, da guitarra saem linhas de baixo, dos pés que controlam os pedais saem batidas e da boca saem ou os sons do kazoo ou os gritos primatas do tema do senhor Hasil Adkins. Mesmo assim, o público não dança. Paulo Furtado diz que, se pudesse, levantava-se e dançava, mas não pode, pois é fisicamente impossível. Atira para o ar mais algumas piadas, entre os temas que debita, pede aos fumadores que fumem um de cada vez, mesmo sendo proibido fumar na sala, porque há grávidas na sala.

Furtado chama Zé Pedro, guitarrista dos Xutos & Pontapés, que aparece vestido de fato e gravata, para tocar guitarra rítmica. Como diria uma amiga, são dois ícones do rock português – sem fazer quaisquer juízos de valor, quer se goste, quer não -, lado a lado em palco, a união entre a velha geração junta-se à nova geração. Algo simbólico e assim. Alguém pede “Contentores”, tema dos Xutos & Pontapés, quando Zé Pedro regressa no encore. Este faz um sorriso amarelo e uma cara de desaprovação, sentando-se para tocar. Zé Pedro parece ser, hoje em dia, mais sério, e não ter grande paciência para brincadeiras parvas destas. Está ali pela música, e safa-se muito bem, deixando o espectáculo para Paulo Furtado.

Fora do Natal dos Hospitais e do Portugal no Coração especial avós e pais, há um natal diferente em Portugal, um natal que se celebra da forma mais profana possível e da forma menos portuguesa possível. É curioso que, numa altura natalícia, Paulo Furtado não tenha tocado o seu mega-êxito de natal “Fuck Christmas, Baby, I Got the Blues”. Mas, entre o poder da sua guitarra, no fim cheia de feedback e, se se fechasse os olhos, parecendo qualquer coisa vinda da pós-no wave nova-iorquina, das composições de Glenn Branca ou dos Sonic Youth, ninguém deu pela sua falta. Porque o gospel natalício segundo Paulo Furtado é suficientemente sem isso.

Rodrigo Nogueira
rodrigo.nogueira@bodyspace.net
25/12/2005