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Festival Best.Off
Casa da Música, Porto
8-10/12/2005


8/11

Quiseram acrescentar mais um “f” a Best Of e nasceu o Best.Off, um certame que, de acordo com o flyer em jeito de capa de disco que serviu de promoção ao dito festival, “ser uma selecção de artistas que se demarcam dos restantes, apresentando novas formas de fazer, ouvir e ver música. Explicado que está o “Off”, diga-se que o Best.Off pretende igualmente reunir os artistas que mais se distinguiram ao longo do ano com aqueles que em outros anos foram importantes na criação musical. Ao longo de quatro dias consecutivos (o Bodyspace decidiu democraticamente faltar ao primeiro desses 4 dias), a Casa da Música reúne gente como Kubik, Hecker, Felix Kubin, HK 119, Les Georges Leningrad, Mylo, Max Tundra, SA-RA Creative Partners, entre outros. E entre esses outros constam também os Radian, trio austríaco formado em Viena em 1996 que faz parte da Thrill Jockey – foi lá que foi editado o último Juxtaposition.

Antes do concerto propriamente dito foi altura de perceber as infinitas possibilidades e utilizações da Casa da Música. Foi mesmo num corredor (sim, o corredor nascente, rodeado das “cortinas” ondulantes de vidro, com vista para a rotunda da Boavista) que os austríacos se apresentaram, com sintetizadores, um baixo, uma bateria e até uma guitarra à vista. John Norman, Martin Brandlmayr, Stefan Németh, verdadeiros arquitectos paisagistas hi tech, ergueram construções onde o pós-rock e a electrónica se fundem. Para os Radian, todo e qualquer estalido pode e deve fazer parte do processo, pode e deve ser musicável. As construções são entrecortadas pela percussão, como que indicando que caminho cada um deve seguir, unido o silêncio e o movimento num só capitulo. O baixo é responsável por metamorfoses nas construções, o sintetizador e a electrónica acolhem tudo o resto, servem-lhes de base.

Radian © Isabel Abreu

Apesar da aparente aleatoriedade das suas construções, os Radian pareceram sempre saber muito bem o que estavam a fazer, pareceram sempre saber perfeitamente de onde vinham, onde estavam e para onde queriam ir. Mais: conseguiram ser bastante mais interessantes ao vivo do que aquilo que os seus discos parecem indicar. Guardaram os maiores trunfos para o final, pois nos últimos temas as coisas tornaram-se realmente estimulantes. E ainda foram a tempo de um concerto bem positivo.

9/11

A terceira noite do Festival Best.Off oferecia desde logo uma noite forte em termos de experimentação sónica. De um lado Kubik, o alter-ego de Victor Afonso, o músico que lançou este ano o seu segundo disco, Metamorphosia. Do outro lado Hecker (Florian Hecker, não confundir com Tim Hecker), artista associado com a Mego, editora com sede em Viena. À semelhança do que havia acontecido com o concerto de Radian, ambas as actuações decorreram no corredor nascente para alegria da acústica que ali recebe os melhores dos tratamentos. Quando Kubik se apresentou em palco os presentes eram ainda poucos mas esse cenário foi-se modificando ao longo do concerto. Concerto que, nas palavras do próprio Victor Afonso se iria dividir entre Metamorphosia e o seu álbum de estreia, Oblique Musique, registo editado em 2001. A transposição desses temas para os concertos faz-se da utilização de uma base programada e da voz e guitarra de Victor Afonso, faz-se de electrónica, jazz em desvario, música de desenhos animados, da escola do corta e cola (os samples) e de muita experimentação.

É árdua a tarefa de Kubik. Não há guitarrista a mandar-se para o chão e, de joelhos, sacar meia dúzia de solos espalhafatosos, não há um Bez para comandar a trupe (por falar em Bez, a passagem de ano no Porto promete um concerto dos Happy Mondays que, já se sabe, pode tornar-se mítico). É uma actuação onde se trabalha e deve trabalha a mente primeiro e o corpo depois. Um verdadeiro desafio. Um pouco no espírito do festival, os sons apareceram muitas vezes acompanhados de projecções. No final, Victor Afonso, apesar de alguns problemas técnicos na primeira tentativa, acompanhou com a voz um vídeo de uma espécie de desenho animado que tocava todos os instrumentos num estúdio de cores garridas. Tendo (sobretudo) em conta o propósito deste festival, Kubik foi uma escolha bem acertada, uma justa representação nacional.

Kubik © Paula Grácio Afonso

Pouco tempo depois seguiu-se então a vez da actuação do alemão Hecker, que contou com a companhia de Tina Frank (artista igualmente alemã, designer que fundou a companhia Inwirements) que ficou responsável pelas projecções que se mostrariam sintonizadas com as erupções sonoras que se haviam de escutar. São ambos amigos do Mac não Donalds, utilizado no caso de Hecker para uma electrónica abstractíssima, o equivalente sonoro a, digamos, uma tela de Jackson Pollock. Electrónica ultra abrasiva, capaz de, por exemplo, provocar alarmante tinnitus durante horas ou dias. Rasgões sonoros de alguma violência, pinceladas regra geral bruscas ou por vezes brandas – mas sempre directas em forma de murro no ar. Florian Hecker nunca mostrou o mínimo sinal de convivência humana. As projecções eram francamente desinteressantes (igualmente abstractíssimas, a fazer lembrar a dança dos das figuras frenéticas do Windows Media Player). Foi uma actuação na sua generalidade algo desinteressante e em piloto automático que fez lembrar a visualização de Irréversible numa qualquer sala de cinema: as pancadas na cabeça com um extintor arrumou com algumas pessoas, e a violação arrumou com metade do total inicial. Os que ficaram sobreviveram.

10/11

Para o último dos quatro dias de festival estava reservada uma noite que prometia prolongar-se pela madrugada dentro, mas poucos imaginariam que a Casa da Música se transformasse naquilo que se transformou: na festa do ano. Foram três blocos de concertos e actuações de DJs que foram acontecendo simultaneamente na Sala 2, Foyer Sul e Corredor Nascente mas a festa fez-se um pouco por toda a Casa da Música. Havia gente por todo o lado (a organização avançou com um interessante número de 900 pessoas), música por todo o lado (era quase impossível estar na Casa da Música sem a ouvir), uma quantidade assinalável de substancias menos licitas e uma situação que não passou despercebida: os músicos quando não estavam a actuar misturavam-se com os espectadores, repetidas vezes. A presença de bombeiros no local quase que anunciava o estado de loucura e excesso: tudo foi permitido. E porque as ofertas eram muitas e ao mesmo tempo (um pouco como acontece nos grandes festivais estrangeiros), havia que fazer escolhas e o melhor era andar de plano de horários na mão ou estar de olho nos ecrãs espalhados um pouco por todo o lado que mostravam informações acerca das actuações.

E porque escolhas eram necessárias, foi na actuação de Felix Kubin que as atenções recaíram primeiramente. E o alemão é uma figuraça que não pode passar despercebida, quer musicalmente quer pelo seu aspecto, de fatinho preto, branco e com um tons de vermelho aqui e ali e sapato pinguim. O músico anunciou desde logo que se iriam estabelecer comunicações com outros planetas e partiu para uma actuação onde trabalhou sintetizadores, órgãos velhos e maquinaria variada para criar composições musculadas, electrónica com forte travo a experimentação que provocou doses consideráveis de dança na plateia. Tudo a um passo da demência que veio em forma de canções sobre sonhos e o pato Donald ou mais concretamente em 3 novas canções de uma série apelidada pelo próprio Felix Kubin de Idiot Music (parte 1, 2 e 3) – e foi mais ou menos por aí que confessou estar preso nos 7 polegadas, por não ser um homem de álbuns. Cortou no imaginário maquinal e robótico ao apresentar a sua canção mais melódica (“There is a garden”) mas pouco depois voltou ao seu estado normal para uma cover de “Robot” dos japoneses Plastics. Aproveitou uma projecção para, no backstage, se preparar para a próxima canção e apareceu em palco sem casaco, com sangue na boca e, viu-se mais tarde, a manejar uma faca simulando esfaqueamentos vários. O último tema (já em encore) contou com a projecção de mais um vídeo que roçou o surrealismo e a bizarria. Um pouco como toda a música de Felix Kubin, que elevou logo ali bem alta a fasquia da noite.

E como o próprio Félix Kubin tinha anunciado, era tempo de rumar ao foyer sul para assistir a uma sempre imprevisível actuação de Max Tundra, responsável pelo electronicamente excêntrico Mastered by the Guy at the Exchange. Mais do que os malabarismos de dança de Ben Jacobs (que se manifestaram imensas vezes durante a sua actuação), o que primeiro chamou à atenção foi a gritante falta de qualidade do som (o foyer sul não mostrou ser de forma alguma um bom local para actuações do género). Mesmo assim foi interessante ver Ben Jacobs assassinar versões de canções de outras décadas ou perceber que uma actuação de Max Tundra é o equivalente a termos 15 mini orquestras a tocarem ao mesmo tempo, uma para cada lado (Ben Jacobs chegou até a tocar uma guitarra algures no concerto). Até porque nas suas mãos, uma canção anunciada como sendo uma “love song” pode facilmente tornar-se motivo de deboche e extravagancia . Max Tundra merecia claramente melhor sala, provavelmente em nome próprio numa sala 2 da mesma Casa da Música ou num espaço como, por exemplo, o Passos Manuel.

Depois do concerto de Max Tundra foi tempo de mais uma voltinha para encontrar no corredor nascente a finlandesa Heidi Kilpelainen (toda vestida de preto e com uns sacos pretos na mão) a navegar num mar electrónica onde navegavam também três bailarinas silenciosas com membranas brancas que se agitavam aqui e ali. O projecto em causa é HK 119, eleito por Björk como a artista do ano. Curiosamente entende-se bem melhor a admiração de Alison Goldfrapp (outra das apoiantes da finlandesa), especialmente no que respeito diz a sonoridades. O espectáculo é visualmente forte mas pouco mais do que isso. Mais uma voltinha para espreitar por momentos curtos Kalaf (na sala 2) com o seu novo projecto, e ainda outra para um piscar de olhos ao documentário sobre punk que se exibia numa parede algures num cantinho de sofás vermelhos e confortáveis. Interrupção do documentário para rumar de novo ao corredor nascente para uma das actuações mais esperadas da noite, a dos canadianos Les George Leningrad. Impressionaram primeiro pelo aspecto de homens das cavernas (o baterista tinha o corpo todo pintado e apresentava-se de tanga e com uma espécie de caveira presa à cintura e exibia-se na frente do palco mostrando os seus músculos) e depois pela forma como conseguiram empolgar a plateia. Houve dança tresloucada, houve quem emborcasse garrafas de bebidas brancas enquanto o diabo esfrega o olho, houve do lado do palco um pós-punk que se dividiu entre o excitante e o aborrecido (naquele estranho e inquietante ponto intermédio) mas a “casa” estava cheia e assim ficou.

Mais ou menos ao mesmo tempo, os Sa Ra Creative Partners distribuíam na sala 2 sensualidade e sexualidade em doses generosas em forma de hip hop - mas não só. É que também há R&B e funk bem amanhado por uma live band. O som nunca foi muito bom (parecia algo preso no palco e com pouca vontade de se fazer ouvir em toda a sala) mas isso não impediu os norte-americanos de fazerem a festa. Também não se pode duvidar de ninguém que ande metido com os Jurassic 5 e com Common, autor de um dos discos do ano. A sensualidade (muita, muita), essa, era reforçada por três bailarinas pouco vestidas que não raras vezes se aventuravam em poses e coreografias MTV. No final parecia que até a própria banda estava surpresa com a recepção, pois por alturas do encore foram obrigados a improvisar um tema para fechar a noite. Noite essa que seguiria até às tantas da madrugada com a actuação de DJs.

Nem é preciso fazer bem as contas para se perceber que a última noite do Festival Best.Off foi uma noite memorável. Uma noite que se deseja ver repetida vezes sem contas na noite portuense. Um pouco por todo o lado via-se estampado no cenário a satisfação de estar presente num evento desta envergadura. É certo que houve momentos melhor que outros (o prémio nesse capitulo terá de ir obviamente para Felix Kubin) mas no geral foi uma festa incrível, de celebração de liberdade quase sem limites: tanto musicais como de expressão pessoal. Uma noite para o livro de memórias da Casa da Música e da cidade do Porto.


André Gomes
andregomes@bodyspace.net
08/12/2005