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Horace Andy
Club Lua, Lisboa
18/11/2005


Parece que por cada pedra que agora levantas, aparecem concertos ou festas de reggae”, desabafou há pouco tempo um amigo perante a inédita vaga de eventos (substancial parte deles promovidos pela Positive Vibes, que desde 2002 trouxe a Portugal nomes como Israel Vibration, Patrice, Groundation, Toots & the Maytals ou Gentleman) dominados por sonoridades oriundas da pequena ilha caribenha que insiste em espalhar as suas sementes pelo globo musical. Este volume inusitado de root sessions e sound-systems acaba por gerar focos de resistência ao fenómeno, acabando muitas vezes por pagar o justo pelo pecador – afinal, não há fome que não dê em fartura, e os estômagos escanzelados apanham congestões com facilidade.

Cada género musical tem as suas vozes características, e Horace Andy é agraciado por um dos timbres mais singulares da Jamaica, mel enriquecido por texturas de vibrato. Além desse pormenor, este nativo de Kingston integra o lote de trigo dourado que deve ser separado do joio que – verdade seja dita – vem colado à moda que resume o reggae aos chavões ganja, Jah, rasta e Babilónia. Por acaso (?) Horace Andy, no refrão de uma das músicas da noite, lembraria para quem o quisesse ouvir que reggae’s not fashion.

Na verdade, quem tem uma carreira com mais de trinta anos já passou por muitas tendências do público e dos media, pelo que a moda vai e vem enquanto o tempo se encarrega de proceder à selecção de quem revela qualidade e amor à camisola. E Horace Andy concentra este par de atributos, tanto nos trabalhos seminais que vem editando desde a década de 70 como nas recentes colaborações (a mais célebre com os Massive Attack, de que saíram temas – alguns originais, outros versões de originais seus – presentes no alinhamento do Club Lua, nomeadamente “One Love”, “Spying Glass” ou “Hymn of the Big Wheel”) com grupos portadores de novas tendências, nomeadamente o trip-hop e o electro.

Horace Andy apresentou-se na sala de espectáculos do Jardim do Tabaco numa noite outonal com laivos de invernia, pelo que o primeiro desafio passava por transportar as hostes para geografias mais calorosas. Tal tarefa coube, numa primeira fase, aos músicos franceses que escoltam o músico jamaicano. A Homegrown Band tocou sozinha nas duas primeiras músicas da noite, mas não manifestou qualquer trauma pela orfandade temporária. Nesse duplo instrumental tratou de lançar pistas para uma prestação que de negativo apenas teve o facto de deixar os presentes com água na boca para mais do que 1 hora e meia de música. Se a secção de metais era composta por um duo em aceso contraste visual (no trompete destacava-se uma cabeça rapada coberta por um baseball cap enquanto que no saxofone pontificavam uns dreadlocks com mais de um metro de extensão), a moldura instrumental para o protagonista maior da noite construiu-se sobre cadências reggae mas também através de hipnóticos acordes de baixo que martelavam as cabeças mais esfumaçadas, arritmias da percussão ao jeito drum n’ bass e solos planantes de guitarra que arrancavam gritos extasiados de alguns membros da plateia.

À terceira (música) foi de vez, e Horace Andy surgiu em palco, questionando em cântico “Do you Love my Music?”. Uma pergunta retórica, decididamente. Dúvidas houvessem, e estas ficariam desfeitas quando um fã se aproximou do palco térreo para expressar toda a sua afeição com duas respeitosas vénias ao interpelador de voz melíflua, que continuaria a encantar a plateia com clássicos como “Government Land”, “Money Money (Root of All Evil)” ou “Skylarking”. Por esta altura, os casacos estavam despidos, deixados em cima das colunas ou no bengaleiro, e as mentes há muito haviam sido transportadas para latitudes estivais onde os problemas são esquecidos através da dança e da música.

Em vez de assumir uma atitude invejosa, os críticos desta recente vaga devem antes cobiçar que os vultos maiores das suas correntes musicais favoritas nos visitem com assiduidade, para que seja possível assistir a mais espectáculos com este padrão de qualidade em Portugal.

Hugo Rocha Pereira
hrochapereira@bodyspace.net
18/11/2005