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Guimarães Jazz 2005
Centro Cultural Vila Flor, Guimarães
11-12/11/2005


Não há que enganar, Guimarães é uma terra especialíssima. Tem um castelo e um Dom Afonso Henriques, mas isso já todos sabem. Para além destes pormenores, é a segunda cidade do Minho, mas tem dois jornais desportivos semanais; numa noite de sexta–feira não há muitos restaurantes abertos, mas é provável que, se estivermos a jantar e numa mesa ao lado haja uma festa de aniversário, no final do jantar nos ofereçam uma fatia graúda de bolo e um copo bem servido de espumante rosé. E é nesta cidade, onde o calor das gentes é inversamente proporcional à temperatura em dias de Inverno, que se realiza aquele que será, provavelmente, o melhor dos festivais “locais” de jazz (apesar dos textos de apresentação filosófico-inconsequentes). Existindo desde 1992, foi a partir de 2000 que solidificou a sua programação através de uma política de contratação de músicos de nível superior (Ken Vandermark, Brad Mehldau, Anthony Braxton, Bobby Hutcherson, Cecil Taylor, como exemplos). A edição deste ano prometia, especialmente, dois nomes estrelares, o pianista Jason Moran (a solo e integrado no quarteto de Ralph Alessi) e os históricos Art Ensemble of Chicago.

O grande, bonito e funcional auditório do novíssimo Centro Cultural Vila Flor recebeu na noite fria de sexta-feira o pianista Jason Moran, com o seu chapéu à Lester Young (pork pie hat). Entrou em palco ao som de música gravada e começou a tocar sobre essa introdução. Actualmente, Moran ocupa uma posição invejável no panorama do jazz mainstream – vencedor de vários prémios da revista Downbeat, é dos mais solicitados pianistas do momento e mantém o seu projecto principal (The Bandwagon) em simultâneo várias colaborações paralelas: Greg Osby, Ralph Alessi, John B. Arnold, Don Byron – com quem se apresentou há poucos meses em Lisboa no forUmusic. O hype gerado em redor do pianista não é à toa e no concerto de Guimarães Moran tratou de mostrar isso mesmo. Abrindo o livro, desvendou a sua técnica superior, plena de retoques cheios de classicismo. A mão esquerda segue as normas e não se aventura muito, trabalha nas marcações de base para a mão direita poder voar livremente na exploração e invenção instantânea da música, com a condição de não fugir aos muros jazzísticos padronizados. Os sons pré gravados vão surgindo, mas é o piano que tem o protagonismo todo. Nas breves palavras ao público não faltou a referência ao professor Jaki Byard, pianista que fez carreira no grupo de Charles Mingus ao lado de Eric Dolphy - tal como Byard, Moran é um pianista de recursos variados. Foi pena a curta duração do concerto a solo (40 minutos?), mas houve ainda tempo para um pequeno encore.

Ralph Alessi, trompetista e compositor, é um músico importante do jazz improvisado de Nova Iorque, onde desenvolve a sua sonoridade um pouco afastada dos focos centrais. No espectáculo que apresentou em Guimarães fez-se acompanhar por Ben Street (contrabaixo), Nasheet Waits (bateria) e Jason Moran (piano). O propósito de reunir um grupo com alguns dos mais requisitados músicos do mainstream actual faz imaginar a vontade do trompetista em dar uma volta ao seu som. No entanto, e apesar das boas companhias, a música do grupo não revelou grande entusiasmo. O grupo entrou frágil, em improvisação generalizada, e ao longo do concerto foi aquecendo o terreno, mas não chegando nunca a fazer o termómetro passar do morno. A previsível soma de talentos dos músicos presentes em palco foi completamente desaproveitada, a liderança do trompetista tolheu o potencial: a música de Alessi embrulha-se em complexas estruturas cerebrais, pouco acessíveis, que um eventual bom desenvolvimento em unidade jazzística poderia suavizar, mas tal nunca chegou a acontecer. No final sobrou uma exibição mediana.

A noite de sábado ficou exclusivamente reservada para o Art Ensemble of Chicago. Definidores de boa parte da estética da música moderna, fundamentais nos desenvolvimentos do free jazz durante os anos 70 e 80, os AEC chegam a 2005 como sobreviventes. Sem Lester Bowie e Malachi Favors (falecidos) e ainda sem Joseph Jarman (ausente), resistem dois estóicos revolucionários. Roscoe Mitchell e Don Moye continuam a espalhar a sua Música (M maiúsculo, obviamente), agora com a ajuda de dois convidados: Corey Wilkes e Jaribu Shahid. E o mínimo que poderemos dizer é que espectáculo do Art Ensemble de Guimarães não desiludiu. Os quatro começaram em improvisação completa, depois passaram por um jazz mais reverente, para terminar num free-funk da melhor colheita. O “puto” Wilkes (trompete, fliscórnio) mostrou saber integrar-se na banda, a consideração pelo mestre Mitchell não inibiu a boa prestação individual. Ao lado de Mitchell (saxofones, flautas), Wilkes desenvolveu uma boa complementaridade; Roscoe Mitchell mostrou que, apesar da idade, ainda sabe produzir sons tão fortes e inventivos quanto deliciosos. O bom entendimento demonstrado entre os sopradores estendeu-se pela noite fora, com ambos a recorrerem a técnicas diversas, incluindo truques à lá Rahsaan Roland Kirk, tocando dois instrumentos em simultâneo. Famoudou Don Moye, alternando entre a bateria e congas, mostrou que ainda é senhor de grande categoria, fornecendo uma tapeçaria de ritmos convenientes – papel essencial, uma vez que o AEC, que sempre fez questão de vincar a importância da música africana, assenta a sua estrutura nas bases rítmicas. O contrabaixista Shahid integra-se bem no quarteto, respeita a memória de Malachi Favors e faz notar a sua voz. Se bem que apenas tivemos direito a 40% do Art Ensemble original, é seguro dizer que o seu espírito esteve presente a 100%. O único senão foi a curta duração, pouco mais de uma hora de concerto, mas não podemos pedir muito mais a músicos de idade avançada. Com a consciência que não estamos na presença da banda no pico da sua força, é ainda assim muito bom ter a oportunidade de aplaudir estes músicos. Guimarães, a terriola distinta, teve o privilégio de assistir a uma briosa exaltação da música negra.

Nuno Catarino
nunocatarino@gmail.com
11/11/2005