bodyspace.net


Seu Jorge
Casa da Música, Porto
04/11/2005


Duas notas prévias: um – os portugueses gostam de sambar, quase que basta ouvir o sotaque do outro lado do Atlântico para despertar o instinto; dois – se o Bloco de Esquerda é a chamada “esquerda caviar”, bem que se pode dizer que Seu Jorge é música popular brasileira caviar (não é por acaso que já é chamado de renovador do samba). Estes dois pontos ajudam a enquadrar o texto que se segue e a perceber porque é que apesar dos bilhetes a 28 euros a sala 1 da Casa da Música estava praticamente cheia de um público que parecia em boa parte cosmopolita.

O concerto começou com Cru e duas das suas músicas mais fortes: “Mania de Peitão” e “Tive Razão”. Seu Jorge (guitarra acústica e voz) fez-se acompanhar de três percussionistas (um deles também se aventurava no cavaquinho) e um baixista, Ricardo Feijão, o melhor e mais discreto músico em palco, responsável durante a maior parte do tempo pela sólida sustentação das músicas. Seguiu-se o bossa nova de “Fiore de la Città” (de Robertinho Brant), após o que Seu Jorge “liberou” toda a gente “para sambar”. A sequência “O Samba Taí” (primeira incursão em Samba Esporte Fino, álbum de estreia rebaptizado de Carolina fora do Brasil), “Cirandar“ (de Martinho da Vila), “Te Queria”, “Coqueiro Verde” (de Erasmo Carlos) e “Emílio” (dos Timbalada) fez das cadeiras coletes de força e levou muita gente a levantar-se dos seus lugares ou a deslocar-se para as escadarias laterais, para poder dançar. Os zelosos assistentes de sala, entre o cumprimento rigoroso das regras e o respeito pela audiência, preferiram não intervir.

Numa espécie de meio intervalo, meio encore, Seu Jorge e o baixista abandonam o palco e deixam-no entregue aos três percussionistas, que fazem demonstração da sua técnica (já evidenciada noutros momentos), no pandeiro (vulgo pandeireta) e nos tambores, em jeito de competição de b-boys. Um momento divertido, mas demasiado alongado e, no limite, desnecessário. O regresso do vocalista deu-se com “Hagua” (também do primeiro disco), que iniciou um ciclo que deixou bem patentes as preocupações sociais da sua música. Seguiu-se “Chatterton”, versão de Serge Gainsbourg que é provavelmente o grande momento de Cru, mas que foi também a desilusão da noite, já que o registo suavizado em que foi interpretada retirou-lhe a magia do ataque funk-industrial da versão de estúdio, substituído por ironias verbais: “O PT [n.r.: Partido dos Trabalhadores, do Brasil] se suicidou / A República Federativa do Brasil se suicidou / O povo brasileiro… sobreviveu”, cantou o músico, perante os aplausos da plateia. “Eu Sou Favela”, apenas com percussão e em registo mais teatral do que cantado, foi o epílogo desse ciclo: Seu Jorge, que até há poucos anos morava numa favela (bem como os seus músicos de suporte), apresentou o caso da banda como exemplo de que “na favela também nasce flor da pedra”. Agradeceu o “voto de confiança” do público, anunciou que vai ser pai pela terceira vez, insistiu que “a favela é um problema social” e ganhou cerca de mil apoiantes.

No encore a sério, Seu Jorge regressou sozinho ao palco, disposto a “conversar”. Mas o propósito era mesmo tocar algumas músicas ao “violão”, dando cumprimento ao desejado momento de o ouvir cantar Bowie em português, como no filme Um Peixe Fora de Água, de Wes Anderson. O momento foi porém sucessivamente adiado: soaram os primeiros acorde de “Ziggy Stardust”, mas problemas na monição fizeram-no mudar para “Life on Mars”, também interrompida devido a problemas técnicos. Alguém no público sugeriu “São Gonça” e por aí foi Seu Jorge, seguindo-se finalmente Bowie em “Rebel Rebel” e em “Space Oddity”, intercalada por “Brasis”, belo retrato social do “país irmão”, espécie de música paralela ao tema oficial de comemoração dos 500 anos da descoberta do Brasil. Dava a impressão que o músico, catapultado para a fama com o papel de Mané Galinha em Cidade de Deus, podia ficar a noite toda em palco a interpretar canções de forma tão despida quanto envolvente e vocalmente irrepreensível. Para o final de duas horas de concerto, já com banda completa, ficou o samba-rock de “Carolina”, muitas palmas e uma promessa: “Vou voltar”. E bem que Seu Jorge o pode fazer: com uma promoção adequada, dá toda a ideia que ele pode chegar ao nível de popularidade de uma Adriana Calcanhoto ou Maria Rita.

João Pedro Barros
joaopedrobarros@bodyspace.net
04/11/2005