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Amplifest
Hard Club
12-/10/2019


Um suspiro de alívio. Talvez não de alívio; de alegria. Um suspiro de reencontro, um abraço ao familiar ou amigo que foi para fora, que andou desaparecido durante uns tempos, a procurar reerguer-se ou a procurar fazer pela vida ou simplesmente a procurar por algum descanso, que isto nem sempre é fácil. O suspiro toma a forma de um sorriso e cresce, inelutável, no rosto. O regresso traz consigo as memórias - tantas, boas, juntas - de concertos e momentos passados, e o Amplifest fez por isso, partilhando velhos cartazes e velhos bilhetes e velhos vídeos do que outrora foi especial.

Especial talvez seja a palavra certa. Especial é este festival para muita gente, até para aqueles que são presença assídua em eventos semelhantes, como o Roadburn ou o Le Guess Who? ou o Semibreve ou o Barroselas. Uma oportunidade, não de escape ou de descoberta. Vai-se ao Amplifest sabendo-se de antemão aquilo que por lá se viverá e que não existe apenas pela música ou pelos filmes. Para muita gente, mais que entrar numa das salas do Hard Club para ver este ou aqueloutro, o importante é descontrair com as companhias que se escolhe ou que se encontra.

No meio disto tudo, ou apesar disto tudo, ou devido a isto tudo, a cidade do Porto - onde apoplexias apocalípticas determinam a sua morte sob o mau olhado do capitalismo e da gentrificação, onde uma roda gigante trava a beatitude do Douro, onde a chuva confere um toque deliciosamente triste às ruas. Para escapar à monotonia de um quarto de hotel, descemos até à Ribeira e encontramos Emma Ruth Rundle, o elo perdido entre Chelsea Wolfe e Scout Niblett, a interpretar "Fever Dreams" com o peso de quem um dia foi do metal mas optou por crescer e passar a fazer canções.

(Este não é um festival de metal, mas apetece dizer que é, seja para chatear ou porque há ali qualquer coisa virtuosa que nos lembra a camaradagem existente no género em questão. Ou então não é mesmo, e a camaradagem existe pós-géneros. Seja como for...)

Escreve-se Emma Ruth Rundle, sem que do cérebro se desalojem outros lampejos sonoros. Como o dos Candura, feedback à solta na cegueira, em crescendo até à agonia do grito (e, este, disse-lhes, lá, assim: devia ter-me furado os tímpanos, e continua a ser verdade; o noise ou será tudo ou não será nada). Elogia-se os Candura porque se acredita, veementemente, no mundo que criaram; opta-se por não o fazer de um modo dito tradicional porque, no final de contas, o que mais interessou no regresso do Amplifest está explicado na ideia desse mesmo regresso. Quase que a música se torna secundária - e não devia, bem o sabemos - perante a perspectiva de podermos voltar a soletrar, orgulhosamente, na agenda: A m p l i f e s t.

Pica-se o hardcore bizarro dos Birds In Row, sem baixo à altura do poderio, mas com a mensagem bem estudada: «cuidem da vossa família». E abre-se a boca de espanto - e músicos que merecem literaturas abriram a boca de espanto - com os Daughters, o nome que merece verdadeiramente estar a bold dentro destes parágrafos. A testa pisada de sangue de Alexis Marshall foi sendo escoltada pelas feridas auto-infligidas que permearam o espectáculo dentro do espectáculo que o vocalista demonstrou amiúde; o ruído, ternamente ligado ao rock, mascarou essa mesma agressão. Todas as pessoas que os presenciaram e que os relataram posteriormente estão certas, seja o que for que digam.

O espanto, as conversas, os pedidos - traz Boris, traz Sunn O))), traz La Dispute, os argumentos, as t-shirts e camisolas adquiridas, as idas de outrém à Rússia e o fascínio que essas histórias nos trazem, os planos para outras investidas por outros eventos ou pontos cardeais - o Amplifest também foi isto tudo e havia a saudade de tudo isto. E, mesmo portugueses, o que queremos é diluir a saudade na garantia. Junte-se-lhe a muralha de som dos Inter Arma, o black metal dos Gaerea, os Pelican em modo thrash e a felicidade que foi para tanta e tanta gente o reencontro (não só com o festival, mas também) com os Touché Amoré e qualquer coisa que se dissesse sobre a qualidade da música ou das prestações iria sempre pecar por escassa - por vezes, importa mais falar sobre outras coisas. O que importou da edição deste ano do Amplifest foi isto: é bonito voltar a lugares onde já se foi tão e tão feliz, e é bonito saber que esses mesmos lugares não nos abandonaram. E agora que cá estão de novo, podemos recuperar o tempo perdido; para o ano, falaremos de música. Sem ela também não teria tanta graça.

(Por falar em graça urge a piada previsível e da qual não existe fuga no que toca a textos deste: os Amenra e os Deafheaven continuam a ser uma merda do caralho.)

Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
15/10/2019