Vamos fazer amigos entre os animais que amigos destes não são demais na vida. E assim era quando a Arca de Noé atracava ao televisor no tempo remoto dos dois canais públicos. Importa ao caso recuperar esse hino televisivo que um dia cultivou numa geração o gosto pela zoofilia e a induziu ao vegetarianismo. Seria certamente esse o sentimento predominante entre os crentes e curiosos que se sujeitaram a um destino incerto (delineado em pleno secretismo pela aniversariante Zé dos Bois) como derradeiro ritual iniciático antes da celebração tribal. A viagem de cacilheiro (sim, o concerto incluiu a travessia do Tejo) permitiu a que as preocupações se ficassem pela capital e a proximidade imediata do rio frisou o novíssimo Feels como um disco em que a puerilidade flúi em vez de efervescer (como acontecia em Sung Tongs). Localizar um concerto de Animal Collective à beira do Tejo é facilitar o encontro entre o ouro e o azul que sempre se dão às mil maravilhas assim que o primeiro dá por si sobre o outro. É permitir o pagante a uma segunda infância, ainda que limitada a hora e meia.
© Miguel
Flora |
Numa lógica semelhante (acolhedora em vez de opressiva) à usada pela companhia
Fura del Baus para envolver o seu público no espectáculo, as etapas (e emoções)
percorridas na noite de quinta-feira levaram que todos se sentissem parte
do Animal Collective: desde o convívio com os cães vadios no trajecto de acesso
até à adaptação gradual ao estranho micro-habitat que a banda dispõe como
meio temporário para o desabrochar de uma pop capaz de unir a turba num mesmo
transe mas impossível de ser designada de forma consensual. Talvez por isso,
uma prestação do Collective pareça ser um momento único - tão oportuno quanto
aquele em que os astros se alinham e fazem brotar da terra framboesa-gambuzino
sob lua cheia. A noite era propícia à apanha de pop silvestre, espinhada por
uma atitude pontualmente punk (será descabido associar isso às novas
músicas apresentadas?) e nem por isso tão camuflada quanto o que algumas opiniões
acerca dos concertos do Collective faziam antever (o que pode ter sido positivo
ou negativo, conforme a afeição de cada um às versões constantes dos discos).
Sejamos francos (até porque tal não perturbou em nada a genialidade do concerto).
O contingente Feels (prato forte no banquete dessa noite) desfilou
com uma aparência facilmente reconhecível, em vez de adulterada ao ponto de
não se reconhecerem no marasmo do set, que, habilmente, também não
se priva dos seus devaneios e momentos de improvisação. O progredir trepante
de “Banshee Beat” mesmeriza a seriedade adulta ao ponto de muitos ficarem
dispostos a sacrificá-la por um mergulho nocturno no rio que se encontrava
mesmo ali ao lado (e projectado ao vivo no palco). “Grass” muito contribui
para galvanizar os ânimos e faz dissipar a ansiedade acumulada na estridência
daquele refrão vociferado:”POW!POW!POW!”. Além disso, prova porque
é absolutamente merecedor do estatuto de primeiro single. “We Tigers”
– bravia pérola recuperada a Sung Tongs - conhece uma transposição
irrepreensível para palco e saúda a memória como um dos momentos mais inesquecíveis
da noite.
Antes do Animal Collective, tinha celebrado rito experimental o xamã argentino
Alan Courtis, que trouxe até à clareira florestal uma guitarra capaz de levitar,
um theremin que profetiza o fim do mundo e um saco de plástico (cheio
de sabe-se lá o quê) tornado arma de destruição massiva. Courtis deixou a
sua marca e mais não se pode exigir a um artista de suporte.
Contudo, a noite pertenceu à actuação determinante do Animal Collective. Conjugaram-se
as incógnitas como peças de Lego e a pop primordial - tal como devia
ser pregada aos peixinhos - sucede ao hip-hop na sequência de dialectos dados
a conhecer à memória recente da margem sul. Há muito que as tardinhas de fim-de-semana
já serviam de prenúncio a isso. Há animais que falam como nós. Como eu
e tu.