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NOS Primavera Sound
Porto
6-8/06/2019


Não há como fugir a isso: como em nenhuma outra edição, o cartaz de 2019 do NOS Primavera Sound gerou uma onda de quase indignação por parte de uma boa parte dos habitués do festival. Em conversas entre amigos ou nas caixas de comentários deste mundo, as reacções de algum desagrado com a direcção artística que o festival seguiu foram-se multiplicando. No centro da questão parece estar um certo afastamento do rock / indie / o que vocês quiserem, e um predomínio do r'n'b / electrónica / hip-hop / o que vocês quiserem. E até um certo reggaeton que foi o alvo principal de todas as críticas (terá ido o Primavera Sound longe demais?).

Certo é que o Primavera Sound sempre foi dono e senhor do seu nariz e, atento às movimentações do presente, não parece querer fechar a porta a mudanças. Mesmo que com isso signifique alguma diminuição de público. Há que declarar vencedores desde já: as mulheres estiveram em glorioso destaque. Erykah Badu, a fechar os três dias, deu o melhor concerto do festival: apesar do atraso de uma hora, encheu o palco com uma presença e uma voz para lá de incríveis, e, com a ajuda de uma banda assombrosa, deu uma valiosa e inesquecível lição de soul. Conhecendo ou não a sua discografia, pareceu-nos que foi absolutamente impossível não se render aos seus encantos. A espanhola Rosalía defendeu o seu último disco com unhas e dentes e um espectáculo que não é apenas um concerto; é dança, é luz, é movimento. E é entretenimento. Do bom. Com El Guincho a assumir os comandos musicais, e com a ajuda de um grupo de bailarinas, Rosalía mostrou o porquê de canções como "Pienso en tu mirá" tornarem a sua proposta irresistível. Em dois dias, Rosalía esteve três vezes em palco: consigo mesma, com James Blake e com J Balvin. É obra. Solange, no primeiro dia do festival, assinou o melhor concerto de quinta-feira com uma surpreendente performance onde, para além da sua voz, terá de se sublinhar a incrível qualidade orgânica (sem espalhafatos, sem corantes nem conservantes) da sua banda. Directo ao assunto, negro e belo, o concerto da norte-americana foi

Mais mulheres em destaque? Fácil: o enorme concerto que os Stereolab de Lætitia Sadier deram no primeiro dia, a carregar fortemente no kraut e a fazer levantar poeiras cósmicas de um passado feliz. Será muito difícil alguma vez esquecer aqueles quase dez minutos de "Metronomic Underground", certo? CERTO? No que resta do primeiro dia, foi muito interessante ouvir Atrocity Exhibition e as novidades de Danny Brown (foi um dos melhores rappers que passou pelo NPS), foi bom - mas não inesquecível - ouvir aquelas guitarras dos Built to Spill, foi simpático ouvir como soa o novo projecto de Jarvis Cocker e foi muito pouco agradável levar com duas monumentais chuvadas. Mas é a vida.

Sexta-feira aconteceu trabalho. Trabalho que nos impediu de ver algumas coisas que muito queríamos ver, como Aldous Harding, Jambinai, Nubya Garcia, entre outros. Queríamos também ter visto Mura Masa (um daqueles artistas que servem também para explicar a mudança nas placas tectónicas da programação do NPS), e cantar " 1 Night " em voz alta, mas o concerto foi cancelado. Escolher os vencedores dessa noite é muito fácil: Sons of Kemet XL, um irresistível turbilhão de percussão e vozes, um vortex de boa energia e bom gosto, uma festa. Mais notas desse dia, mais notas desse dia. Ah, Interpol em 2019 já não dá. Diz até este que assina, que em tempos idos vibrou com Turn on the bright lights. Mas já não dá. Vimos uns 20 minutos de James Blake apenas para confirmar que continuamos a achar que o britânico se afastou demasiado daquilo que podia ter sido. E vimos uma grande parte do concerto de J Balvin, claro, sem culpas, sem achar que se trata de um crime lesa festival, sem ver ali o demónio, mas achando ainda assim que é complicado justificar a escolha.

O terceiro dia foi de facto o melhor dia de todo o festival. Por vários motivos e mais alguns. Já falamos de dois, falamos agora de mais uns quantos: Jorge Ben Jor escreveu uma das mais brilhantes páginas da música brasileira, assinando uma série de discos absolutamente fundamentais para se entender o Brasil, o samba e sabemos lá nós o que mais. E por isso ver o brasileiro ali em cima do palco a fazer uma espécie de medley gigante da sua não menos gigantes carreira, foi um prazer. Foi uma festa. E foi, claro, histórico. Ainda que o som dos seus discos não esteja totalmente ali (nem podia), ainda que os temas tenham tido uma pitada de funk a mais, ainda que qualquer coisa que já não nos lembremos.

A abrir a tarde, o encontro estava marcado com O Terno de Tim Bernardes e companhia e ouvir aquelas canções com o sol a bater nos olhos pareceu-nos, por momentos, a melhor forma de sermos recebidos no recinto depois de ta intempérie do primeiro dia e o assim-assim do segundo. Lucy Dacus foi competente na apresentação do seu cancioneiro (ficamos a aguardar para ver como funciona como sala fechada). E perdemos um par de concertos que gostávamos muito de ter visto. Mas é preciso comer, e ser simpático com as pessoas e descansar a alma. Se os festivais ainda são coisas maravilhosas, temos muito a agradecer ao NOS Primavera Sound por isso. Pelo risco, pela não conformidade e pela variedade. Feitas as contas, e apesar do NPS ser muito mais pequeno do que o festival-mãe, parece-nos que havia vários festivais possíveis dentro do mesmo festival. Era mesmo só fazer escolhas. Venha 2020.

PS - Desculpem só haver fotos do último dia. A música é importante mas há coisas ainda mais importantes.

André Gomes
andregomes@bodyspace.net
25/06/2019