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Julia Holter
Capitólio, Lisboa
29-/05/2019


Começou sozinha, ao piano, a voz flutuante sobre um Capitólio com uma novidade: lugares sentados para receber a autora de Aviary (2018) e Have You In My Wilderness (2015), dois discos tão essenciais quanto bizarros na sua criação pop. O cliché - é mulher, é da voz, é da loucura - impele-nos à comparação com Kate Bush, mas há em Julia Holter, a espaços, um pouco também do génio que era Syd Barrett, que também era, como tão bem o sabemos, completamente louco. Começou sozinha, com "In Gardens' Muteness", tema presente no seu último trabalho, o mesmo que veio apresentar a Portugal com três concertos, o último dos quais na capital.

Capital essa que Holter já conhece quase de ginjeira, conforme o foi explicando de forma mais ou menos alegre ao longo do concerto, não se sabendo se foi da ginja ou se ela é mesmo assim, um elfo fofinho perdido no meio de vastas terras medievais, onde a realeza é boa e onde cada pessoa discursa como num conto de fadas (ela, a cantar, é quase isto: uma versão avant-garde do gigante de João E O Pé De Feijão). Conhece Lisboa porque esteve cá recentemente, pela mão da ZdB, a quem agradeceu - e a Sérgio Hydalgo - por diversas vezes.

Agradeceu ela e agradecemos nós, que a oportunidade de ver algo tão raro assim (esta música, queremos nós dizer) pode parecer escassa num mar de cantautores e bandas de stoner e trap merdoso. A banda, de cinco elementos, só serviu para aumentar e adocicar ainda mais o génio de Holter, navegando entre o free jazz e uma música de carácter quase impossível de se descrever sem recorrer a todos os livros alguma vez escritos sobre música.

Ao longo de hora e meia, foi possível sentir a fantasia pela mão de temas como a belíssima e dançável "Feel You", a fórmula mágica (Circe, ela é Circe!) expressa em "Voce Simul" (piano, voz e trompete rumo ao clímax), "Les Jeux To You" (com um brutal jogo de luzes a ajudar) ou "Sea Calls Me Home", o tema que fez com que nos apaixonássemos irremediavelmente por Holter naquele ido ano de 2015 (chegámos tarde ao barco, já se sabe). Até final ainda houve espaço para duas "I Shall Love" (a primeira, que foi na verdade a segunda versão, meteu na cabeça de muitos o jogo fonético/sonoro de Holter) e para a magnífica "Betsy On The Roof", cuja grandeza não foi afectada nem quando Holter se esquece do que estava a fazer a meio. Os elfos existem mesmo, nós vimo-los.

Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
03/06/2019