bodyspace.net


Micah P. Hinson / Homem Em Catarse
Musicbox, Lisboa
23-/01/2019


Um shhh... sonoro, vindo das profundezas do público, dá o mote para o concerto de Afonso Dorido enquanto Homem Em Catarse, que no Musicbox - sala que bem conhece - teve mais uma oportunidade para deliciar quem o escutou com os temas de Viagem Interior, espécie de carta de amor a um país que não aparece nos media. O tom melancólico da sua guitarra, que por vezes parece pintar melhor a saudade que até os mestres Mono, aliado a uma voz de tiques fadistas ajudou a aquecer a plateia para o que seguiria: Micah P. Hinson, artista que também parece encontrar na música algum tipo de catarse (e do qual Afonso se confessou fã). Em "Alqueva Beat", houve um loop, efeitos e a guitarra como um bombo para fazer a festa, e a melódica de "Teremos Sempre Paris" colocou um ponto final numa curta meia-hora de concerto.

Curta, porque havia um curfew a respeitar, conforme nos explicou depois o texano Micah, de cigarrilha na boca, boné na cabeça, literatura na ponta da língua e um gigantesco "fodei-vos" na atitude. O estereótipo dirá que esta última é, precisamente, por ser do Texas - o estado que gostaria de ser independente ou, pelo menos, de ser o centro de toda a América. E esse mesmo estereótipo e atitude são tipificados na óptima "Fuck Your Wisdom" e no seguinte verso: Why should I care if I don't belong?

Não há que enganar: Micah P. Hinson é um misfit, e este era também um concerto para misfits, daí se retirando uma explicação para o facto de o Musicbox não ter tido nem meia casa. Não há tanta gente no mundo disposta a ser "o outro" quando quase todos procuram ser "o mesmo". Micah é ele próprio, um trovador conservador a quem venderam a ideia de América, a qual se recusa a deitar fora por convicção; de certa forma, a sua intransigência é bonita. E até parece já ter mudado de ideias em relação a alguns aspectos do capitalismo americano: a dada altura, elogia o Povo Chickasaw e o facto de ter tido serviços de saúde grátis. Nada mal para quem dizia que Obama destruiu o sonho americano.

Conservador, mas libertário - na guitarra vão brilhando as palavras eternas de Woody Guthrie, This Machine Kills Fascists. E até pode matar, mas é mais importante que dê vida a quem dela precisa, como a todas as pessoas que interromperam pensamentos suicidas após escutar a música de Micah, conforme revelou o próprio por entre bocas à indústria musical e agradecimentos ao público por o ajudar a alimentar a família em tempos de crise. A sua atitude em palco não foi tão auto-depreciativa, de forma bem humorada, quanto honesta; não é que haja em Micah P. Hinson qualquer falta de amor próprio com pózinhos de ironia. Ele é que se está a cagar para o que possam pensar dele.

Da melancólica "I Keep Having These Dreams" chegou-se a "Oh Spacemen", com Micah a beber um saudável UCAL de chocolate entre temas (por vezes misturado com cerveja, o que motivou alguma preocupação por parte de uma fã), e ainda houve tempo, em 1h20 de concerto, para o gospel ateu de "God Is Good", para a furiosa (tanto quanto o apocalipse, cujo medo que este desperta disse ser bom para «mudar constantemente de pele») "Small Spaces", e para um final com "My Blood Will Call Out To You From The Ground", já depois de todos os presentes terem rido, terem chorado, terem bebido, terem dado as mãos e, enfim, terem percebido que esta coisa de ser humano não é fácil - mas haverá sempre canções a apontar-nos o caminho. Um bem haja, Micah.

Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
25/01/2019