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MADEIRADiG Music Festival
Madeira
30 Nov -3/12/2018


Menos de cinco minutos após a aterragem, eis que a presença se começa a sentir, inatacável e inabalável, por mais que os escândalos rebentem, que as palavras nos retraiam, que os falhanços nos façam levar as mãos à cabeça. O aeroporto dá-nos as boas-vindas não à Madeira, que esse nome foi substituído. Esta ilha cuidadosamente localizada no Atlântico é hoje em dia de Cristiano Ronaldo, o logos que une todo o sangue que aqui fervilha e que foi passado de geração em geração. É o seu rosto e o seu número - o sete, o da sorte, o da Criação - que adorna cada canto, cada monumento, cada loja de recordações, cada painel de publicidade, cada máquina fotográfica que ocasionalmente dispara contra a paisagem. Há na Madeira um a.C. e um d.C.. De "Cristiano", e não de "Cristo".

É impossível contorná-lo, ou fazê-lo sequer descer do degrau em que foi colocado, que já não é de ídolo e sim de Deus. Mas, e há que ser honesto se se for fã de futebol: que poderia fazer um Deus tradicional face a um golo?

Fez-se Cristiano. E fez-se também calor, tempo africano como que sublinhando a lonjura deste Portugal em relação ao outro, ao "verdadeiro". Esta é uma terra cuja identidade é Legião: Portugueses, Madeirenses, ilhéus, Ronaldos, gente orgulhosamente só que, como disse Alberto João Jardim ao grande Rui Miguel Tovar, «procura que ninguém a chateie». Não que um presumível alguém seja visto com desconfiança. Há afabilidade e simpatia, como em qualquer lugar existe afabilidade e simpatia; não são características inerentes a um qualquer povo específico, mas à humanidade. Assim como há gente boa no contnente (rapidamente se aprende que no sotaque madeirense não existe espaço para o "i"), há gente boa na ilha. Mesmo que muita dessa simpatia passe - como em qualquer lugar afectado pela praga do turismo - por quererem que lá se gaste o nosso dinheiro. O maracujá, a banana local, o fruto da monstera deliciosa passam pelos nossos lábios no Mercado, pequenas provas que nos levem a comprá-los.

(Deve ser a isto que chamam capitalismo com um rosto humano.)

Claro que - ignorando todas essas armadilhas - existe a beleza extraordinária que só se encontra na solidão de uma ilha: o oceano de azul eterno, pontilhado aqui e ali pela saudade tornada espuma, e que rodeia todos e quaisquer planos de fuga que se pudessem conceber. Por outro lado, quem quereria fugir do paraíso, ainda que a areia das praias tenha sido substituída por pedra e por negro? Quem desdenharia poder andar de manga curta numa noite de Novembro?

À medida que o sol se põe gerando dezenas de outros movimentos artísticos, como tem feito ao longo da história, lembramo-nos daquilo que nos trouxe cá. O MadeiraDig, festival dedicado à música de cariz mais experimental, cumpriu este ano 14 de existência, voltando a levar à Madeira curiosos e conhecedores do que de mais interessante se tem feito a nível do som. Sobretudo, de outras paragens e linguagens: alemães, holandeses, ingleses, talvez uma vintena de portugueses e uns cinco ou seis madeirenses - três dos quais actuariam no festival. Foram deles, aliás, as honras de abertura, através de um espectáculo conjunto de Aires e Rui P. Andrade, onde um drone começou por nos dizer olá antes de dar lugar ao noise - ora ambiente, ora completo -, composto por pequenos trechos interligados. Rodeados de plantas, com luz mínima em palco, deram-nos um concerto semelhante ao acto de adormecer embalados pelo ruído das ondas chocando contra um rochedo: o volume pode incomodar-nos mas, à medida que nos acostumamos, o corpo relaxa e flutua com ele.

(Talvez - conscientemente ou não - acreditamos que não - este seja um noise madeirense, e não um noise criado por gente que nasceu na Madeira. Porque também por lá se flutuou, durante a longa viagem por entre montanha e curvas rumo ao Pico do Areeiro, observando do alto as nuvens casando com o mar e a terra, até se chegar ao frio cume e se parar, por alguns momentos, em solene contemplação. Um noise madeirense, porque uma paisagem destas não merece uma música genérica ou um poema que rime, e sim algo que venha das entranhas, que arrepie a pele. Algo que não poderia ter nascido sem se visitar este mesmo Pico em criança, sem se receber a doutrina de que esse mesmo Pico é seu, sem se poder fascinar centenas e centenas de vezes ao longo do ano, e não apenas quando as viagens estão mais baratas.)

Os Amnesia Scanner, que actuariam logo a seguir naquele que ainda era o primeiro dia do festival, também aproveitaram a deixa para vir das entranhas - e misturaram caos, ruído, rave, trap epiléptico, memes do 4chan e t-shirts dos Rolling Stones numa amálgama rítmico-industrial, que não raras vezes resvalou para a palhaçada. Caso se estivesse nessa mesma onda, nem seria um mau concerto. O problema é que depois de ter visto já coisas tão bonitas quanto a Ponta do Sol, e antes de ver outras coisas tão bonitas quanto toda a demais ilha, não há vontade nenhuma de ficar cego com a merda dos strobes - e, portanto, sai-se a meio e vai-se mas é descansar.

Não houve espaço para poncha, na Madeira, porque já se lhe conhecia o sabor, mas houve-o para Nikitas - uma bebida tão emasculada quanto o é gostosa, e que tempera na perfeição um passeio pela zona de restauração até ao Barreirinha onde, dizem-nos, há lugar privilegiado para o Aleste, quando este acontece, claro. Gelado, fruta e álcool, três ingredientes que também estiveram na origem de Resina, o nome com o qual a violoncelista Karolina Rec assina os seus discos. Gelado, o seu país natal, a Polónia de contraste absoluto com esta Madeira, e a melancolia que obtém a partir do seu instrumento; fruta, os loops que cria e as imagens que vão passando no ecrã em fundo, rosto esculpido em pedra por onde correm caças e guerras; álcool, a embriaguez presente nos cenários bizarros que se vão construindo perto do final, quando o violoncelo dá também lugar à voz.

Poderia ter sido melhor do que aquilo que foi caso Karolina se tivesse cingido ao violoncelo, assim como Ana Da Silva, a madeirense que, a.C., dava a conhecer a ilha ao mundo, e a japonesa Phew poderiam ter sido muito piores caso tivessem mantido o mesmo registo com o qual se apresentaram, voz infantilizada oscilando entre o português e o japonês, entre o "olá" e o "友達", entre a electrónica modular e o ritmo. Subitamente, a música transforma-se: berraria catártica, beats a lembrar uma criança a deambular pelo techno, expressões mais trabalhadas mas não menos surreais - aqui está chovendo, e aí está bom tempo. Claro que, para alguns, mais interessante que o concerto foi observar uma das representantes da Umbigo, em elevado estado de alguma coisa, rodopiando os braços como numa dança contemporânea, enquanto duas colegas suas pareciam estar a iniciar um show lésbico, nas cadeiras das filas da frente do MUDAS. A música, ou as Nikitas, afectam-nos de diversas maneiras.

(Tal como para os demais pontos de interesse da Madeira, para chegar até ao MUDAS - Museu de Arte Contemporânea da Madeira -, situado na Calheta, é preciso ultrapassar uma sucessão de túneis e vias rápidas, que escondem a paisagem dos olhos de quem conduz [18 túneis: contámo-los]. A sala é acolhedora e íntima, e não albergará mais de duzentas pessoas, possuindo ainda uma vista prazeirosa para o inescapável oceano. É preciso no entanto ter cuidado: as portas de vidro que dão para as varandas são por vezes traiçoeiras e capazes de nos marcar a fronte com uma ferida que não pedimos, como sucedeu a uma jovem holandesa e a outro idiota continental.)

Eric Chenaux seria à partida um dos nomes mais interessantes desta edição do MadeiraDig, bastando-lhe para tal ser uma das figuras da Constellation, casa para nomes como os Godspeed You! Black Emperor ou os Do Make Say Think. Também munido de loops e de uma guitarra, o único do cartaz a ter recorrido a este instrumento, o músico hoje radicado em Paris mostrou um blues idiossincrático, a fazer lembrar Bill Orcutt, ainda que mais hauntológico, e dedicou o concerto a Michael Rosen, um dos organizadores do festival. A sua voz suave procurou ecoar pelas paredes da sala, em lentidão meditativa e em malhas como "Summer & Time" (do óptimo Skullsplitter, 2015) ou "Slowly Paradise", do seu mais recente álbum (2018), atingindo o apogeu com o golo de Hernâni ao minuto 95, frente ao Boavista.

A quietude, a mesma que se encontrou depois de caminhar 4km por entre montanhas e rochedos apenas para dar de caras com um bar no meio da Ponta de São Lourenço, não esteve presente nem em Maja Osojnik nem em Damien Dubrovnik, estes últimos no dia seguinte. A primeira motivou uma discussão acesa sobre que a outros artistas se assemelhava (a opinião final andou por "Sónia Tavares misturado com Whitehouse", por mais aterrador que isso soe), ao passo que os segundos foram despindo as suas camisas, gritando palavras enfurecidas e incidindo luzes vermelhas de alerta sobre os presentes, no meio de um turbilhão noise que, diziam-nos antes, só conseguiria ser devidamente apreciado com tampões nos ouvidos. Não foi preciso, e isso é motivo para desalento. Mesmo que, à saída do festival, se tenha escutado o seguinte chavão: a música ter de ser isto, tem de ter tesão!.

Talvez. Ou talvez a tesão esteja na fuga à morte, depois de passar um sinal vermelho e rezar para que não viesse nenhum carro do outro lado, no meio de uma montanha de estrada em obras e fustigada pela névoa e pela chuva fraca. Talvez esteja nas piscinas naturais do Porto Moniz, onde um jovem da Europa de Leste se despiu sem pudor algum. Talvez esteja no autocarro que dobra curva atrás de curva rumo ao Curral das Freiras, ou no teleférico que se espraia do Funchal ao Monte (mas não está no casal de alemães que invade a cabine sem serem convidados. Os alemães adoram invadir coisas, bem o sabemos). Talvez esteja na tradicional espetada ou nos filetes de peixe-espada, no bife de atum ou nas deliciosas lapas. Nos pescadores de Câmara de Lobos. No horizonte que nos mostra as Ilhas Desertas, e naquele onde se vislumbra, ténue, o Porto Santo. Nas casas típicas de Santana e no parque recreativo sobrenaturalmente péssimo que aí se situa. Nos vidros do Cabo Girão. Nos tentilhões dos Balcões. Nas nuvens atravessando os vales. Nas Corais bem servidas...

...Ou na saudade de já querer lá voltar.

(Talvez esteja também em Jessica Moss, que abrilhantou o palco do MUDAS com o seu violino, começando com canções judaicas e passando, depois, para os loops e para temas que, disse, eram inspirados por física quântica - área que não dominamos de todo, nem ela, admitiu-o. No final, só pedais de efeitos e uma voz celeste, qual lamento profundo do Médio Oriente. O festival - e todas as ascensões cardíacas - terminaram verdadeiramente aqui.)

Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
12/12/2018