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EDP Vilar de Mouros 2018
Vilar de Mouros
23-25/08/2018


O decano dos festivais portugueses regressou. Para ficar. Vilar de Mouros é uma experiência completamente diferente daquela a que estamos habituados; a aldeia é minúscula, os acessos praticamente escassos, o carro é obrigado a pernoitar num milheiral e, se não existir um maior cuidado, a sola da sapatilha encontra uma bosta de vaca e deixa um rasto odorífico no ar durante dias. Fora isso, é um sonho: não há putos a fazer asneira, as litrosas no único supermercado da zona são quase dadas e percebe-se que quem vem não vem pelo "ambiente", pelo "campismo", pela "organização" ou quaisquer outras parvoíces vazias e comercializadas a turistas do som. Vem pela música. Pela música que ouviam quando eram, eles próprios, putos - e desde então não ouvem mais nada -, mas pela música ainda assim.

No primeiro dia, avista-se um punk da velha guarda, cabelo espetado, casaco de botões e picos, a arrastar alegremente um carrinho de bebé pelo meio da poeira. Seria, certamente, fã dos Sex Pistols. Esses não estavam em Vilar de Mouros, mas estava John Lydon, vulgo Johnny Rotten, hoje uma pálida sombra do tipo que chocou o Reino Unido no final dos anos 70. Quer dizer: continua a fazê-lo. Basta-lhe ser apoiante de Donald Trump e do Brexit. Com os seus Public Image Ltd., Lydon/Rotten continua a fazer discos mais ou menos interessantes (nenhum que se compare, claro, a Metal Box), mas em palco o punk, e o seu pós-, já não é o que eram. Gordo que nem um texugo e com ar de avôzinho, o João foi controlando a sua armada actual, sem Keith Levene ou Jah Wobble, por entre clássicos como "Memories", "Death Disco", "This Is Not A Love Song" (em modo horripilante), "Rise" ou "Public Image", sem esquecer "Open Up", a technada que fez com os Letfield (e, aqui, sem qualquer vestígio de techno). Mandou beijinhos, fartou-se de cuspir para um caixote do lixo e ainda teve a lata de mandar foder o sistema. Meu grandessíssimo parolo: tu ÉS o sistema.

Ao menos Philip Oakey teve a noção suficiente para não enveredar por politiquices artolas, até porque quem o foi ver e aos seus Human League só tinha uma coisa na cabeça: apanhar "Don't You Want Me" ao vivo, canção que, naturalmente, foi recebida de forma efusiva, com o público presente a entoar o refrão muito antes de o britânico começar a cantá-la. Antes disso houve "Love Action", Oakey com um casaco de cabedal até ao joelho numa espécie de sonho gótico (se calhar para fazer pandã com Peter Murphy e David J), Oakey com um vestido amarelo para mostrar que isto da pós-sexualidade não é coisa nova, e "Human". O concerto termina com elogios a Chrissie Hynde, que subiria ao palco logo a seguir, e com "Together In Electric Dreams", malhão escrito em parceria com Giorgio Moroder e cujo single em vinil uma certa pessoa comprou na feita de antiguidades de Ponte de Lima, uns dias antes. Foi bonito.

Antes dos Pretenders houve a pretensão: desliguem o caralho dos telemóveis. Evidentemente, ninguém o fez. A Sra. Hynde não se pareceu importar muito com isso, contudo, oferecendo aos presentes algum punk rock aguçado, a xaroposa "I'll Stand By You", conselhos mais ou menos astroteológicos («se pedirem um desejo à lua cheia ele realiza-se...»), uma versão de Grace Jones e um momento de aceleração máxima em "Don't Get Me Wrong", já depois de ter pedido ao público para que não se chegue muito à frente (devia pensar que os velhos tinham sarna). O concerto resume-se à visão de casais de meia-idade aos beijinhos no recinto como se fosse 1982. Para alguns, era mesmo.

Peter Murphy e David J fizeram as pazes e deixaram muito gogó de cuequinha molhada: o seu regresso a Vilar de Mouros serviria para lembrar os Bauhaus, a banda que praticamente inventou o género (mesmo que ele não goste disso). Agora com uma belíssima barba branca a adornar-lhe o rosto, Peter Murphy começou por ter alguns problemas: a sua voz de barítono não se ouvia o suficiente, perdendo-se os poemas numa salganhada de não-volume - o que foi especialmente doloroso na magnífica "In the Flat Field". Restava-nos o instrumental, oferecido de forma exímia. Com "She's In Parties", tudo muda: ei-la, canção soberba, aquele baixo minimalista após o refrão, aquele "solo" de melódica, aquele sonho a preto e branco a abater-se sobre o Minho inteiro. O riff absurdamente funky de "Kick In The Eye", a elegia a Bela Lugosi, a faca pop de "The Passion Of Lovers" e uma versão agorafóbica de "Stigmata Martyr" completaram o que foi o melhor concerto de todo o festival. Mas isso já sabíamos à partida.No segundo dia, já depois de: termos ido a Tui atestar o carro como um bom português; termos limpado quaisquer resquícios de matéria fecal de um iPhone 5S que teve o azar de cair dentro de uma latrina de festival; termos chegado atrasados ao concerto dos GNR e termos proferido cobras e lagartos contra a VERDADEIRA ESTUPIDEZ que foi dizerem-nos que não poderíamos proceder à troca do copo para a cerveja nem este poderia ser lavado (ah, o capitalismo ecológico), apanhamos David Fonseca em palco para um daqueles concertos que passamos a invejar quem sofre de surdez. «Boa noite, Vilar de Mouros» e um assobio ainda vá que não vá. A subsequente pop parola, feita a pensar nas cinquentonas "alternativas" que enchem a cara de base e vão para festivais de música apanhar pó e ser fotografadas para as Caras desta vida, é que ninguém suporta. E depois o David faz uma série de versões patéticas, com Depeche Mode e coisas assim, enche o terreno de confetti e bolas de plástico gigantes e o apocalipse nunca pareceu estar tão perto. Minha Nossa Senhora.

Os Editors, que estavam presentes no cartaz porque há quem se sinta velho dpois de ter tido 20 anos em 2005, ainda levaram alguma água ao seu moinho, se bem que já não haja a mínima paciência para bandas que tentam desesperadamente soar aos Interpol, que tentavam desesperadamente soar aos Joy Division. A toada épico-negra de "Smokers Outside The Hospital Doors", com o piano à dianteira, ainda se papou; assim como "Munich", «uma canção antiga», e "An End Has A Start". Tudo o resto não foi mais que Coldplay para quem não gosta de Coldplay.

E que dizer então dos Incubus? Apenas isto: o nu metal é o anjo que se recusa a tocar a sua trombeta, preferindo torturar-nos durante a eternidade em vez de provocar o juízo final. Já era mau quando se tinha 15 anos, continua a ser mau agora. O dia em que o reavivarem vai ser o mais negro da história da humanidade. A palhaçada começa quando, do nada, os norte-americanos enfiam um pouco de Punjabi MC numa qualquer balada molha-pitas (e mesmo assim foi esse o melhor momento do concerto), e continuou com scratching foleiro, o lento strip-tease de Brandon Boyd de forma a mostrar as tatuagens, um baixista a dar demasiado, um guitarrista a fazer número e um baterista de boné com a pala para trás. Foi tão mau que até houve gente que foi para Vilar de Mouros com sweatshirts da Dickies. Foi tão mau que até houve espaço para uma versão dos INXS, para uma incursão por "Wish You Were Here" dos Pink Floyd e para um verso de "Gin And Juice", de Snoop Dogg, metido a martelo. Foi tão mau que só poderiam acabar com "Drive", com a multidão a cantar num bonito momento de c̶o̶m̶u̶n̶h̶ã̶o̶ azeite. No bloco de notas do repórter a palavra "socorro" está escrita dezassete vezes. O suicídio teria sido melhor opção.O último dia do festival só se poderia ter feito com um costeletão enorme e a raiar de sangue no bucho, cortesia do restaurante O Dias, na pacata aldeola de Covas, até onde se chega depois de uma sucessão de curvas e contra-curvas que serão capazes de enjoar os maus incautos. Com a digestão, a náusea e um roadie de Luís Severo aos ombros, apanhámos o cantautor lisboeta a debitar temas já clássicos do cancioneiro moderno como "Cabeça De Vento", "Escola" (numa versão mais acelerada que a que lhe conhecíamos), "Amor E Verdade" e "Ainda É Cedo", num concerto que teve a dura missão de fazer esquecer o derby. Não eram muitos os que estavam no recinto a esta hora mas parece que o Severo conseguiu-o.

John Cale começou por dizer que era bom ver Portugal, e depois atirou-se de cabeça a um rock quebrado e dançável, a fazer lembrar David Byrne .Ou será David Byrne que nos faz lembrar John Cale? Pouco importa. Depois desse rock veio a estranheza avant-garde, com uma espécie de cântico, campainhas, algum drone e guitarras tocadas com arcos, até tudo terminar como Cale começou: com uma versão dos Velvet Underground, no caso "I'm Waiting For The Man", com o piano, repetitivo, a ditar as suas regras. Interessante, mas aquele não é palco para ele: metam-no num Semibreve.

Os Los Lobos fazem rock cantado em espanhol, o que é sempre execrável, e não se esqueceram de "La Bamba", o seu maior sucesso, que nem sequer é um original seu. Os pedidos para que o público cumbiasse encontraram eco em alguns, que provavelmente nunca viram um set do La Flama Blanca. Seja como for o Porto estava a perder, logo, este concerto - e a vida em si - foram um lixo. Ao contrário do dos dEUS, que em nova incursão por Portugal (e eles já são da casa) trouxeram um espectáculo em modo best of onde se destacou "The Architect", a toada bossa nova de "Nothing Really Ends" e a fabulosa "Bad Timing". No fundo, os dEUS tratam cada concerto em Portugal como se fosse o primeiro - e isso é extremamente louvável. Até somos pessoas para os vermos outra vez.

Quem também é da casa são os James, que levaram uma vasta multidão até Vilar de Mouros, algo no qual se calhar ninguém acreditaria - espectáculos dos britânicos por cá já são mais de trinta. Até na ponte que cruza o rio havia quem se empoleirasse para ver Tim Booth atirar-se para o meio do povo, insurgindo-se contra a omnipresença dos telemóveis logo a seguir, durante "Getting Away With It (All Messed Up)". Voltaria a repetir a proeza logo depois. «Mudamos o alinhamento todas as noites, e também durante os concertos», e é por isso que se ouviu "Curse Curse"; saímos durante uma versão mui soft de "Sit Down" e levamos para sul a crença de que Vilar de Mouros é provavelmente dos poucos festivais aos quais ainda vale a pena ir para realmente ouvir um pouco de música. É só proibir a entrada a betos. Ou não o tornar "fixe" o suficiente.

Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
17/09/2018