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Fanfare Ciocarlia
Fórum Lisboa, Lisboa
03/10/2005


Qualquer pessoa que estivesse em Lisboa e tivesse cabelo que não era lavado há anos correu para o Fórum Lisboa à procura da Fanfare Ciocarlia. A Fanfare Ciocarlia é uma banda de Zece Prajini, uma aldeia da Roménia, que é constituída por 12 ciganos (pelo menos em palco), velhos e não tão velhos assim, que estão habituados a tocar horas e horas em festas. Vieram a Portugal para um digressão que percorreu o norte do país, incendiando cineteatros por todo o lado, culiminando no concerto de Lisboa. A rapidez, a loucura e a dança são as pedras basilares de toda esta festa, que culiminou num final surpresa inesperado (já lá vamos).

A Fanfare Ciocarlia é maioritariamente uma brass band, tendo apenas dois membros nas percussões, normalmente apenas bombo e tarola. Aliados às tubas, aos bombardinos e aos sousafones, perfazem a secção rítmica da banda, que tem, para além disso, saxofones, trompetes e requintas. A sua música caracteriza-se por ritmos cada vez mais rápidos, em delírio crescente, e o seu reportório passa não só por temas da Europa de Leste, como também por alguns conhecidos dos nossos ouvidos ocidentais. Mas sempre com uma condição: ser alegre e puxar pela dança. Não há momentos mortos. Não é estranho, então, que pouco depois do início do concerto um dos membros da banda tenha dito num inglês rudimentar (nenhum dos membros da banda fala outras línguas): "Thank you very much, are you ready to dance?". Também não é estranho que, logo após isso, as pessoas tenham ultrapassado as barreiras físicas do Fórum Lisboa (as cadeiras) e se tenham levantado e acorrido em massa à frente do palco. Era vê-los, velhos, friques, novos, quem tivesse pago os 18 € do bilhete ou não, tudo em delírio colectivo ao som de cada nota, de cada batida, de cada aceleração de ritmo. Palmas (quase sempre fora do tempo) e gritos colectivos (quase sempre incómodos) foram as coisas mais ouvidas da parte do público.

A banda, essa, também ia dançando, mas pouco, ficando-se por se movimentar de um lado para o outro. Todos estavam vestidos como se tivessem sido tirados da rua momentos antes, o que ajuda à naturalidade de tudo aquilo. Um deles (o melhor saxofone solo) enverga óculos de sol e faz "fixe" com os dedos para o público. Há temas com vocalista, mas nenhum dos membros tem essa função específica, vai-se trocando, alguém canta, alguém faz barulhos percutivos com a boca, etc. Baseia-se quase tudo em ritmo binário, há temas que começam com um solo de algum dos membros, no saxofone ou no trompete (sempre interrompidos pelas pessoas a falar dentro da sala), membros vão saíndo do palco, membros vão regressando ao palco, de todo o lado aparece gente. Quando metade da banda sai, toca-se um tema mais melancólico, mais calmo, mas cedo volta toda a fanfarra. O vocalista limpa a garganta e canta com o coração. Alguns dos membros passam o tempo todo a dizer coisas em romeno, e o público delira e bate palmas por cada palavra incompreensível, um gesto já de si incompreensível. Do nada, aparecem duas jovens dançarinas, talvez do público, talvez da banda (das duas uma: ou eram friques ou vestiam-se assim porque era costume na sua terra) e começam a dançar. A banda aplaude, e chama-lhes "Ladies, señoritas" e qualquer outra coisa incompreensível. É tudo feito como se fosse no meio da rua, numa festa, o membro mais velho usa chapéu, como se tivesse estado minutos antes a jogar à sueca no jardim. Toca trompete e dá um passinho de dança.

Depois de uns problemas de som, a banda retira-se. Palmas e palmas e palmas e regressa. Começa a tocar e pouco depois, desce do palco e sai da sala. Como é uma brass band, uma banda que é feita para marchar, é facílimo andar por todo o lado. Chegam até ao bar e é a debandada geral da sala. Acontece algo indescritível que tentaremos descrever: as pessoas amontoam-se à volta da banda, que vai tocando, sempre sem parar, sempre com a mesma força, com a mesma entrega, sem qualquer tipo de amplificação, as gentes saltam para cima das mesas, tentam ir para o segundo andar para poder ver (havia uma fita a barrar a entrada nas escadas) e os seguranças não sabem o que fazer. Como no bar se podia fumar, o ar torna-se irrespirável, mas as pessoas dançam e cansam-se na mesma, como se não houvesse amanhã. Ninguém quer deixar a banda ir-se embora. De repente, um dos percussionistas (que tocava tarola e bongós), sai do meio da confusão e vai andando pelo bar, com um chapéu e uma nota de 20 € pegada à testa, a pedir dinheiro. Quase toda a gente lhe dá. "Cigano" é um comentário algo ouvido por lá.

Às vezes as festas fazem-se assim. Sem respeito pelas regras impostas, pelo que é suposto acontecer. Nesta gloriosa vinda da Fanfare Ciocarlia a Portugal ninguém se sentiu defraudado. Do tema de James Bond, passando pelo standard "Caravan" e sabemos mais lá o quê (não interessa), todos se passaram com o que ali aconteceu. Especialmente os da banda, mesmo fazendo isto dia após dia após dia. Mas não é a profissão deles, é aquilo que eles fazem, com a mesma naturalidade com que fazem há anos e anos. E nós só temos de nos divertir com eles.

Rodrigo Nogueira
rodrigo.nogueira@bodyspace.net
03/10/2005