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Festival Semibreve 2016
Braga
28-30/10/2016


Não será preciso escrever que o Minho é lindo, pois não? Ou que se come e bebe terrivelmente bem no Minho? Ou que estamos numa relação de amor muito séria com o Minho? Não, não será, e eis que o berço da pátria mal-amada nos deu mais um motivo para subirmos e passarmos um fim-de-semana bem regado: o Semibreve, festival que se posicionou como uma torre no circuito português, e que tem atraído centenas de "invasores" à cidade dos arcebispos para umas quantas sessões do que de melhor a música electrónica e experimental tem para nos oferecer. Más-línguas, assim género a nossa, dirão do Semibreve que é o Out.Fest dos pastilhados. Mas é uma má-língua respeitosa. Uma piadinha no meio da seriedade.

A seriedade cruza a arte sonora moderna com a digital, e pelo menos metade dos concertos a que se assistiu contou com esse acompanhamento visual - umas vezes ajudando à experiência auditiva, outras vezes nem tanto. Kara-Lis Coverdale foi a primeira a fazê-lo, no acolhedor Theatro Circo, ela que se fez cobrir por um pano e que deixou, primeiramente, que o som tomasse conta dos nossos sentidos para depois nos fazer sentir como numa casa assombrada, recorrendo a drones e ritmos rangendo. Depois, olhou para o lado cósmico da coisa e foi sendo iluminada por pequenas fagulhas de luz e um sintetizador, jogando a primeira com o segundo, entre o aleatório e o prosaico, o etéreo e o noisy. Serviu para aquecimento e pouco mais.

"Servir" foi mais o propósito de Kaitlyn Aurelia Smith, que trouxe até Braga um disco novo - Ears, editado este ano - e com ele não só o Buchla pelo qual se apaixonou mas também uma voz robotizada e uma certa tonalidade pop, algo que poderia soar estranho se não estivéssemos enturmados com o Semibreve e pensássemos nisto apenas como experimental (que na linguagem corriqueira quer dizer "barulho"). À sua frente, as manipulações que fazia iam sendo projectadas para que se pudesse estudar a forma como controla a máquina, ou vice-versa. E o que se diz, em jeito troll, de Laurel Halo (que actuaria no dia seguinte) faz mais sentido aqui: Enya em ácidos. Completamente.

Exactamente um ano após nos ter arrancado longos e sentidos bocejos durante uma apresentação no Jameson Urban Routes, Andy Stott regressou a Portugal com um verdadeiro grower, Too Many Voices, que à primeira parece mais do mesmo e depois lá se vai entranhando. Contudo, não foi destas canções que se fez o seu set, e sim do dubstep colado a Burial, enquanto o homem se escondia no negrume e os sub-graves ecoavam pela black box do gnration sob um calor francamente insuportável. Foi melhor que em Lisboa e continuou a ser uma seca. Saberá Stott dar concertos?

Se não é o gajo de Manchester que faz a festa que seja a gaja da Amoreira, via Bordéus. Nídia Minaj deu o concerto-barra-after indispensável, trazendo o som das ruas a um cenário mais talhado para a academia - e talvez por isso muitos tenham abandonado a seguir a Andy Stott. Os que ficaram, contudo, souberam dançar a batida lisboeta com mais ou menos graus de álcool no sangue, tantos quantos forem necessários para rir a bom rir com um sample de "Nós Pimba" por entre o ritmo. Nídia Minaj é um génio. Ou génia. Whatever.Se a noite anterior acabou com cinco mongos na Correlhã a beber whisky e a ouvir merda em vinil até às tantas da manhã, a de sábado seguiria caminhos mais sinuosos - mas já lá vamos. Antes disso, havia que estar em Braga para um dos concertos mais aguardados (pelo menos para nós) de todo o Semibreve: o de Christina Vantzou, que se deslocou até à Capela Imaculada do Seminário Menor com o Ensemble Harawi, composto por músicos locais. O local foi sabiamente escolhido; as três peças apresentadas muito tinham de liturgia, o espírito de Deus caminhando sobre os drones e a atmosfera criada pontilhada por leves toques na harpa. Pena foi que tivesse durado apenas meia hora, visto que merecia muito mais. Há quem feche os olhos em meditação profunda, imerso nos sons que aproveitam, quase na perfeição, a acústica peculiar da Capela. E há o corpo físico de Deus - leia-se: Adolfo Luxúria Canibal - que abandona a performance a meio. Deus abandona a Igreja. Esta nunca havíamos visto.

Já a noite dava ares da sua graça quando Rashad Becker sobe a palco acompanhado por Moritz Von Oswald, num casamento que, no papel, tinha tudo para dar certo. Na prática, o piano preparado do primeiro viu-se cercado pela electrónica de ecos improvisacionais do segundo (nada de dub, portanto), num concerto sem qualquer espécie de sentido. De um lado, uma única nota; do outro, só uma breve incursão por terrenos acid fez do espectáculo algo menos que penoso. Penoso, sim, porque não existe a mínima paciência para exercícios de auto-indulgência que terminam como começam, com dezenas a aplaudir a masturbação como se esta fosse arte. Na escala de zero a Tara Perdida terá sido um 9,5.

A irritação sentida dissipou-se de certa forma com Tyondai Braxton, dando lugar a outra - aquela provocada pelo falhanço. O norte-americano, filho de outro Braxton - Anthony - estava a dar um dos melhores concertos do Semibreve quando o seu equipamento, após escassa meia hora, dá o berro. Foi pena. Até então tínhamos sido brindados com noise electrónico, acompanhado por projecções mais ou menos glitchy, onde ritmos ásperos e contagiantes não nos deixavam ficar indiferentes. Isto é, dava para dançar. O que é sempre bem-vindo. Claro que no Theatro Circo, onde a audiência permanece sentada, essa toada perde-se um pouco; mas, como uma bem merecida bofetada, o som de Tyondai Braxton foi inabalável.

Se Andy Stott havia decidido ficar-se pelo dubstep, Laurel Halo subiu a fasquia e passou, também, house e techno em quantidades astronómicas, pelo meio metendo ambient ritmado com groove dub que parece querer fazer com que os corpos se abanem mas que na verdade só nos deixa de mão no queixo, a contemplá-la (ou a tentar, visto que também não foi brindada com assim tanta luz). É quando se entrega à magia do 4/4 que realmente nos cativa. De resto foi apenas sensaborona, tal qual Ron Morelli, já a sala ia a meio, a hora havia mudado e a cerveja ficava mais apetecível. O techno deste soou, ainda assim, melhor que o de Rui Vargas, que apanhámos no Sardinha Biba logo depois. Um momento que é facilmente traduzível pela palavra "socorro".Cansados, ressacados, ainda houve espaço para mais dois concertos, desta feita à tarde, e que deram por terminada esta edição do Semibreve. Ambos no Theatro Circo. E, quando já nada o fazia prever, eis que Oliver Coates se assume como uma das grandes surpresas do cartaz do Semibreve: violoncelo e loops aliados a ritmos dançáveis, enquanto casas e cidades computorizadas se iam desenhando em fundo. O adjectivo que melhor o descreve será idiossincrático, e no melhor dos sentidos - o género de concerto que nos faz querer ir para casa e ouvir toda a sua discografia, porque foi, acima de tudo, uma maravilhosa descoberta. Quando recorre aos efeitos quase que soa a uma orquestra inteira... Maravilha!

O final concreto deu-se com uma actuação de Paul Jebanassam e Tarik Barri, que ameaçaram ser outros Braxton pelos problemas técnicos que tiveram logo ao início, mas os quais resolveram prontamente. Final molinho onde eram as enxurradas noise aquilo que mais nos faziam sentir alguma coisa, paredes azuis em fundo indicando a demência, ruído estremecendo pelos quatro cantos do Theatro como se estivéssemos numa sessão de cinema, fogos-fátuos seguidos por pequenas melodias trovejantes. Não foi mau, mas podia ter sido muito melhor - e o mesmo se poderá dizer desta edição do Semibreve. Para o ano resolve-se.

Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
06/11/2016