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Festival de Vilar de Mouros
Vilar de Mouros
25-27/08/2016


Dia Um

O que salta à vista, desde o primeiro momento em que pisamos o sagrado solo do Woodstock português, é o amadorismo da coisa - o mesmo que havia existido no Woodstock original, e por isso não poderemos criticá-lo por aqui. Filas intermináveis para levantar bilhete ou pulseira; apenas um multibanco no recinto, que nem sequer funcionava, variados problemas de som; um barracão a servir como sala de imprensa, et cætera, et cætera... Mas, assim que começamos a entrar no espírito (e assim que metemos comida no bucho após duas horas sem uma mísera notinha de 5 euros na carteira), Vilar de Mouros abre-se em todo o seu esplendor perante uma audiência sedenta de algo diferente daquilo a que nos habituámos. Foi a nossa estreia no festival. Foi o regresso desse mesmo festival, dois anos ou dez anos após a última edição que interessou. Foi o primeiro passo no maravilhoso Mouraíso (ainda não se registou o trademark, mas fica aqui a intenção de o fazer). Para o ano, se tudo correr bem, cá estará ele - e cá estaremos nós - outra vez.

Talvez nessa altura seja imperativo vir umas horinhas mais cedo, esquecendo por momentos que do pousio habitual na Correlhã até Vilar de Mouros distam uns quantos quilómetros. A malta do sul pensa que tudo no Minho é perto, é o que é. Infelizmente, devido a esse pensamento centralista, não foi possível ver in loco a primeira meia-hora da actuação de Peter Hook, que aqui se apresentou antes de partir em digressão por aí fora para tocar na íntegra os temas de ambos Substances, o dos Joy Division e o dos New Order. Curiosamente, o seu concerto aqui assemelhou-se a um aquecimento para essa mesma digressão: primeiro com os temas que partilhou com Ian Curtis - ouviram-se "Digital", "Isolation", "She's Lost Control", "Shadowplay" e "Transmission" - e depois com aqueles que mudaram a história da música electrónica, casos de "Bizarre Love Triangle", "Blue Monday", "True Faith" ou "Temptation", finalizando um espectáculo que mais serviu para o público desfilar a sua melhor t-shirt do Unknown Pleasures (spoiler: eram todas iguais) com "Love Will Tear Us Apart", dedicada aos conterrâneos Happy Mondays, que tocariam dali a pouco. Não importa se é bom ou mau. É nostálgico. Para algumas pessoas só isso interessa.

Uma nostalgia que esteve em peso não só no cartaz de Vilar de Mouros mas também em 90% do público que até aqui se deslocou, composto, claramente, por malta que pensou ainda estar nos anos 80 a dar tudo no RRV ou no Bairro Alto. E sabem que mais? Antes estes veteranos de guerra, quarentões ou cinquentões a quem o álcool não aflige, que a canalha que faz crowdsurf em concertos de Orelha Negra. The Legendary Tigerman não será grosso modo um desses veteranos, mas a sua sonoridade também nos leva a tempos idos, tempos porventura melhores, em que o rock era uma doença das boas. O alinhamento não se alterou assim tanto desde a última vez que o vimos: "Gonna Shoot My Woman", "Walkin' Downtown", "These Boots Are Made For Walking" e o final frenético com "Twenty First Century Rock N' Roll", com Paulo Furtado a mandar abaixo tudo o que via à frente, incluindo ele próprio, acabando deitado no pit dos fotógrafos. Mais não se pedia de um dos melhores (o melhor?) frontman português e de um trio de guitarra, saxofone e bateria que é uma verdadeira força da natureza blues. É assim que se faz rock n' roll!, disse ele a certa altura. Pois é, caralho. Pois é.

Os Happy Mondays, a banda com orgulho de ser mitra, trouxeram a Vilar de Mouros um há muito aguardado espectáculo, eles que só se haviam deslocado a Portugal por uma única vez na vida. Consigo trouxeram a carismática Rowetta e o lendário Bez, que desiludiu um bocado a malta - não estava nem todo cego nem com duas maracas nas mãos, apenas uma. Como os tempos mudam... Num concerto que valeu mais pelo constante relembrar do fabuloso 24 Hour Party People (a canção foi logo das primeiras), os Happy Mondays deram uma lição de história sobre Madchester, tiveram em "Step On" um momento verdadeiramente efusivo e tiveram a noção de tocar "Hallelujah" segundo a remistura de Paul Oakenfold. Podem regressar, desta feita com ketamina? Obrigado.

Ia-se notando que uma generosa fatia da audiência de Vilar de Mouros veio até aqui, pelo menos neste primeiro dia, não só para ver Peter Hook mas também Peter Murphy, rei e senhor do gótico (quantos terão trocado o Entremuralhas por ele? Era giro sabê-lo). Esses, pelo menos, não terão saído defraudados; Murphy deu um concertão, apoiado numa banda que mais parecia de heavy metal, percorrendo não só as suas canções a solo ("Cuts You Up", essa gloriosa canção, não foi esquecida) como também as da banda que o deu a conhecer ao mundo, os Bauhaus ("The Passion Of Lovers", outra gloriosa canção, yada yada). Apresentando-se em bom português, Murphy foi bastante aplaudido, viu do palco filas de telemóveis e isqueiros a erguerem-se durante "A Strange Kind Of Love" e ainda teve tempo para anunciar mais quatro (!) concertos em Portugal este ano. A nossa história de amor com o sujeito não terminará nunca, ao que parece.

De António Zambujo não rezará a história. Não por culpa dele (Quinto é um belíssimo álbum) mas porque a debandada após Murphy foi geral. Ficaram os resistentes, aqueles sem medo de escutar boa música portuguesa às duas horas da madrugada, e principalmente aqueles sem medo de a dançar. Isto é que é bonito!, exclamou a dada altura um senhor simpático, quase tão simpático quanto "Flintstones", que tem um verso que diz assim: Eu sei que cheguei tarde / Mas tenho uma explicação..., que quase parece ser um mea culpa pelo concerto a horas quase impróprias. Não interessa. Foi realmente bonito.Dia Dois

O segundo dia de festival valeu uma ida a Viana, para cumprir o desejo de Amália Rodrigues e de um peixinho à beira-mar, tendo culminado na viagem via shuttle que ligava Caminha ao festival - repleta de veraneantes à piscina a acenar e a atirar água ao autocarro, árvores quase a decepar alemães e paisagens belas, maravilhosas, do mais Alto dos Minhos. Podemos vir morar para aqui, papá? Podemos, podemos? Não sei, pequenotes, que este não parece ser o festival para vós - a julgar pelo relato da talentosíssima fotógrafa Bodyspace, que jurou ter visto em casal em pleno acto de amor junto ao rio. Woodstock é assim! O que Woodstock e Vilar de Mouros podia não ser é um palco para NEEV, uma banda surgida sabe-se lá de onde que aqui veio tocar uma espécie de James Blake dos pobres, cujo som estava escandalosamente alto e que conseguiam ser dez vezes piores quando enveredavam pelo português do Brasil. Quando roubavam o riff de "Feeling Good", contudo, eram inenarráveis. Foda-se!

Mantendo a toada lusitana, os Linda Martini deram aqui um concerto agradável q.b. - não foi o melhor que deles vimos, de todo, e já vimos muitos -, começando com "Dá-me A Tua Melhor Faca", passando pelos temas de Sirumba e mostrando que "Juventude Sónica", afinal, é destinada a uma faixa etária específica; em qualquer outra situação o refrão seria entoado com garra... A mesma juventude que deu sinais da sua graça durante o concerto dos Milky Chance, conjunto alemão que faz, essencialmente, canções para anúncios de telemóveis ou protectores solares e que trouxe até às grades uma dúziazita de agrobetos que sabiam as letras todas da sua música tropical feita à guitarra, com uma pitada de electrónica, não muito diferentes de um Kygo e que fizeram abanar mais corpos que os Happy Mondays... Mas até soavam castiços, se os ignorássemos.

Os Echo & The Bunnymen, que mudaram bruscamente de ideias no que à captura de imagens diz respeito meros minutos antes do concerto, vieram aqui provar que estão vivos, esquecendo-se de que nunca foram mais do que uma banda de mortos salvo "The Killing Moon" e "Lips Like Sugar". A plateia adorou, evidentemente. "Roadhouse Blues", dos Doors, foi ali metida à martelada - tal como algum krautrock, algum house, algum psicadelismo e uma grande, grande fatia de aborrecimento. Algo que não existiu em David Fonseca. Sejam quais forem as opiniões em relação à música do senhor leiriense, o que é certo é que o tipo dá um grandioso espectáculo, empolgando a plateia com uma pop que mais parecia movida a speeds - no caso dos seus temas mais recentes, aqueles de Futuro Eu -, arranjando tempo para ensaiar uma canção nova (rapidamente aprendida pelo público) e recuperando o projecto Humanos para homenagear um homem da região, Variações, recitando pelo meio Eugénio de Andrade (com "É Urgente", que alguns reconhecerão pelas velhinhas cadernetas da escola). Num dos grandes concertos do festival, Fonseca ainda teve tempo para resgatar "Borrow" aos anos 90 (caraças os Silence 4 eram realmente bons!) e para se enfiar no meio do público, tal como Tigerman o havia feito. Tudo termina com um pára-quedas passado de mão em mão e com um aplauso mais que merecido. Talvez vénias fosse melhor pensado.

Os Orchestral Manoeuvres In The Dark eram um dos nomes mais aguardados do festival, até porque esta foi a sua estreia em Portugal, onde gozam de bastante carinho. Não fizeram a coisa por menos, trazendo consigo vários clássicos da synthpop dos anos 80, a começar por "Enola Gay", que aqui foi quase tão óptima como quando cantada pelos Super Dragões. Num concerto sem grandes falhas, os OMD cumpriram o prometido, que era, citamos, kick our asses electronically; e, de facto, soube bem ouvir estes sintetizadores mágicos após tantas guitarras, assim como soube muito bem ouvir "Souvenir", independentemente do que possam dizer alguns habitantes do concelho de Ponte de Lima. À medida que iam tocando ia descendo o nevoeiro, despedindo-se o quarteto com "Electricity" e um triste we're told to go... Podem voltar sempre, não nos importaremos mesmo nada.Dia Três

Não chegámos a tempo de ver Samuel Úria, mas o mesmo confidenciou-nos, horas mais tarde e com cervejas a rodar, que o seu concerto havia sido espectacular e muito bom, as mesmas expressões que utilizou para o concerto dos Tindersticks. Chegámos a tempo, isso sim, de observar de perto o espectáculo dado por Bombino, também conhecido como o Jimi Hendrix tuaregue, homem electrificado que muito fez dançar o povo ali presente. Um óptimo concerto e não o podia ser de outra forma; afinal de contas, Bombino era um Mouro em Vilar de... De Tiago Bettencourt safam-se as bifanas comidas numa roulote na vila e um único comentário: "epá, não".

Os Waterboys eram um regresso há muito aguardado. A banda britânica veio para apresentar Modern Blues, álbum editado em 2015, entrando em palco após uma curta apresentação da M80 (o que foi ridículo) e permitindo observar de perto, pela primeira vez ao longo de três dias de festival, um grupo de cinquentões a rodar alegremente uma ganza. Quanto à sua música, uma espécie de pub rock a lembrar os pianos dos Supertramp ou as guitarras mais moles dos Dire Straits, não é de todo a nossa droga predilecta - mas reconhecemos-lhes talento e atitude, especialmente durante uma boa versão de "Roll Over Beethoven" e durante a interpretação de "A Girl Called Johnny", um dos seus temas clássicos. Abandonam o palco sob uma chuva de aplausos e sensação de dever cumprido, e foram igualmente os únicos que fizeram alguns fãs aninhar-se junto à entrada no backstage na ânsia de obter um autógrafo...

Os Tindersticks, que já fizeram de Portugal a sua segunda casa, deram um concerto competente, sendo que, infelizmente, o som suave da banda de Stuart Staples foi vilipendiado pela conversa alheia (é esta a nova moda dos festivais deste ano? Seria preferível a do Éder a fodê-los). A música tem aqui um groove muito sedutor, e a voz de Staples continua a transbordar emoção por todas as notas - ele que, rodeado por piano, guitarra e o que mais viesse continua a revelar-se capaz de cativar a alma, apaixonar casais, apadrinhar futuros filhos. Não o poderia ser de outra forma. A dada altura, um misterioso ponto laranja começa a sobrevoar o recinto, conferindo ao espectáculo dos Tindersticks o grau de magia que faltava... Se é que faltava algum. Vitoriosos. Uma vez mais. Coube o destino que se lhes seguissem os Blasted Mechanism, banda onde o tribalismo, o rock e o drum n' bass caminham de mãos dadas, para levar à loucura uma boa dose de betalhada que devia ter voltado para o Sudoeste. E assim terminaram três dias no Mouraíso...

Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
07/09/2016