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Amplifest 2016
Hard Club, Porto
20-21/08/2016


Um festival diferente, a experiência de sempre. O Amplifest mudou, ainda não se sabendo para que lado da balança penderá no futuro - esperando-se, evidentemente, que continue a ser para o prato que diz "incrível". Se um festival como este, sem grandes marcas e/ou apoios camarários, onde o amor pela música continua a ser a palavra-chave, esgota os seus quatro dias (dois "à séria" e duas sessões especiais), é evidente que isso merece o nosso respeito e carinho. Mas, no entanto, nem sempre o público que esgota um festival é aquele que desejaríamos. Perguntem aos que foram obrigados a levar com um bando de espanhóis de matraca não-fechada em Mono, ou aos que aguardaram impacientemente na fila antes do concerto de Neurosis, algo nunca antes visto aqui. E se o referimos é porque o Amplifest é, lá está, uma "experiência" e não um festival; e a comunidade faz, também ela, parte da experiência.

Dia Um

Está sol no Porto; eram todos aqueles que se deslocaram ao Hard Club a meio do querido mês de Agosto para uma ou várias sessões de porrada, armados de negro e de cerveja na mão, esperando a dose de som bom que faria com que tudo nesta vida valesse a pena durante uma hora ou mais. E vinham vindo, a solo ou em grupo, sorridentes ou carrancudos, alguns ainda a recuperar da noite anterior no Cave 45 - onde os Aluk Todolo deram as boas-vindas aos festivaleiros -, outros tantos conhecendo o Porto pela primeira vez. A meio da tarde, já são alguns aqueles que se posicionam em frente ao palco da Sala 2 para observar de perto os Redemptus, cuja cruz rudimentar colocada em frente à bateria não é sinónimo do som que apresentam, um som que poderá ser descrito simplesmente como "peso", acompanhado por filosofias várias sobre auto-superação ou algo que o valha (sendo que existe mais filosofia nas cordas ásperas de uma guitarra). Competentes, cederiam depois lugar na tabela aos Minsk, também eles discípulos do peso, armada de cinco homens duros (uns dínamos, vá) que disparam heavy metal como de Vladimir Putin fosse lançar os seus mísseis nucleares na manhã seguinte, dizimando a Europa inteira. Infelizmente, "pesado" nos Minsk pende mais para "balofo". Ou talvez mereça vir colado a um "sono".

Do peso passamos para algo que também arrasta multidões: a "jarda", segundo os trâmites dos bascos Altarage, que pelo menos duas pessoas classificaram como "os Portal dos pobres" (mas no bom sentido) e que encheram a Sala 2 até ao tecto com um metal sujo e desgraçado, uma verdadeira muralha de som construída a partir de facas, sufoco imenso que nos fez sentir tão bem. Sufoco deles, e sufoco do público; era impossível mexer um braço que fosse dentro daquela salinha. O que não aconteceu na sala principal, durante o concerto dos Kowloon Walled City: mal os pés sentiram o troar daquele pós-rock básico, deram corda e abalaram para jantar.

Ainda André Silva não deixava muito boa gente com um largo sorriso na cara e já Anna Von Hausswolff se apresentava como uma das maiores surpresas do festival, trazendo o apocalipse ao Hard Club, destruição coberta de névoa como as madrugadas de inverno. Entre o pós-rock e a sua voz KateBushiana, miss Hausswolff elevou a sua música a um patamar francamente operático e impressionante, chuva abençoada num festival que é, quase todo, feito de electricidade e poucas vezes de mistério. Isto, quando cantava. Quando gritava engolia todo o mundo para dentro de si e pisava terrenos inacessíveis a dezenas de artistas mais ou menos "consagrados". O transtorno acaba numa sessão quase noise, fervendo o sangue de um público entre o embasbacado e o efusivo. Absolutamente gigante.

Eram um dos grandes nomes do Amplifest deste ano, pelo currículo, pelo disco novo, pelo facto de não virem a Portugal há já algum tempo. Os Kayo Dot foram um objecto estranho na Sala 2, e isso é facilmente provado pela quantidade de gente que foi abandonando, umas a seguir às outras, o concerto de Toby Driver y sus muchachos, seja por fome - (ainda) era hora de jantar -, seja porque os norte-americanos, abençoados sejam, lançaram um álbum carregadinho de teclados azeiteiros que se parecem dissolver no ar, quase como se o metal se tivesse juntado à estética vaporwave para gerar um filho bastardo que tem tanto de incompreensível como tem de genial. Se bem que, na Sala 2, andou mais pelo último adjectivo. Claro que quem só pensa em manter viva a chama do heavy metal, como se leu numa t-shirt, vai cagar de alto para coisas mais fora da caixa. Em Kayo Dot houve espaço para tudo: americana pesada, cadências prog, guitarras em confronto constante e uma bateria que mais parecia reger-se pela ordem da severa matemática de Lautréamont. Uma sessão de improvisação constante que atingiu o seu ponto alto numa deliciosa slow jam, ali a meio, já pela sala circulava melhor o ar... Teria sido deles "o" concerto do Amplifest não fosse um senhor chamado Dominick Fernow, no dia seguinte, mas já lá chegaremos.

Em nova vinda a Portugal, havia um certo receio de que os Mono já não fossem capazes de nos surpreender tanto ao vivo quanto o fizeram no Musicbox, no Paradise Garage e no RCA - por esta ordem. Puro engano: apresentam-se em palco com uma urgência ainda maior do que aquela que lhes conhecíamos, uma urgência quase punk, poderosa e (a)celerada, antes de se dedicarem àquilo que sabem fazer melhor, que é fazer chorar as cordas de uma guitarra (e com elas várias centenas de pessoas). A neve caiu sobre a Sala 1, mas nem isso silenciou a nação espanhola ali presente. O que, convenhamos, acabou por estragar um bocado. Valha-nos a glória angelical de "Ashes In The Snow" para nos alhearmos do mundo inteiro. Um alheamento que prosseguiu em Roly Porter, autor de um dos discos electrónicos mais interessantes do ano, que fechou o primeiro dia de Amplifest com o after que se exigia e com a batida saltitona e pneumática de "Mass".Dia Dois

Retemperadas as forças e após um curto passeio pela Cidade Inbicta, ei-nos de volta ao Hard Club para mais uma dose cavalar de anfetaminas metálicas, ou quando assim não fosse, de cidra fresquinha, que na esplanada cá fora era mais barata que lá dentro (e consta que o whisky cola era quase irrisório). O sol hoje parecia ferver mais e isso implicou uma entrada rápida na primeira sala para sentir, na pele, os efeitos magnéticos do ar condicionado. E também do rock pesado, estranhamente radiofónico, dos Black Heart Rebellion, um rock pintado de negro como que para fazer jus ao seu nome e que, a dada altura, se transforma num som xamânico e/ou desértico que hipnotiza a alma - com essa coisa valorosa chamada guitarra a arranhar-nos os ouvidos uma e outra vez, como manda a tradição. Ouvidos esses que quase não sobreviviam à catarse proporcionada pelos Névoa, verdadeiros prodígios do black fucking metal que ali foram mostrar o novo álbum e gelar os ossos dos muitos que encheram a Sala 2. Isto, claro, quando não utilizavam esses mesmos ossos como percussão. Atrás de nós, há quem tape os ouvidos com ambas mãos na ânsia de escapar ao ruído... Sem sucesso, acreditamos. Porque é impossível ignorar o eco daquela voz vinda das cavernas mais profundas, assim como o ódio que brota de cada riff...

E se os Névoa nos foderam os ouvidos, que dizer dos Caspian, que ao início ainda parecem uma saudável lufada de ar fresco, prontinha a revitalizar-nos o tímpano, mas que depois desatam a puxar ferro? Agradecidos por voltar ao Porto - disseram eles; vamos crer que sim -, encheram a Sala 1 com riffalhada prenhe de esperança e um pós-rock entre o eléctrico e o fofinho que fez as delícias de quem ali esteve. Mas faltou algo. Faltou dissonância, rancor. Faltou medo. Faltou o buzz que os Downfall of Gaia mostraram a seguir, black ríspido e ensurdecedor, onde os melhores momentos se prendiam com a aparição dos agradáveis blastbeats. Os melhores momentos musicais, bem entendido. O melhor momento a nível de experiência foi ver uma criança de colo a entrar na sala, armada de headphones industriais, pronta para começar a dedicar a sua vida ao black metal... E já que se fala em mudar de vida, CHVE, que é como quem diz o gajo de Amenra, que é merda, podia muito bem passar a dedicar a sua às couves. Drone litúrgico quase tão ridículo quanto a fila que se foi formando para Neurosis.

Uma fila que, convenhamos, era esperada. Porque são os Neurosis, banda com uma legião de fãs detrás de si, homens que abriram as portas de muitos ao metal mais extremo. Porque era a estreia dos Neurosis por cá - e isso não implica necessariamente que a maioria dos que ali estavam fossem portugueses. Porque ajudaram a criar essa caixa chamada pós-metal... E quando uma banda praticamente inventa um género novo, quem somos nós para lhes retirar protagonismo? Começando quando ainda faltava a muita gente conseguir entrar na sala, os Neurosis arrancam de forma suave (se é que este adjectivo pode ser usado para os descrever), mas vão acelerando progressivamente ao longo do concerto e, por conseguinte, proporcionando o nózinho na veia que indica que o sangue está a atingir aquele point of no return, exigindo erguer-se, exigindo headbanging, exigindo que a puta da casa venha abaixo. Como em "Locust Star". Tanta tensão, tanta emoção, tanto suor e tanta espera só poderiam dar em lágrimazita, não era? Uma lágrima de que os Neurosis se alimentam, construindo uma camada de som poderosa e circular com extrema mestria. Uma força imparável e a "experiência" maior, por defeito e previsão, do Amplifest.

"Experiência" e não "espectáculo" porque esse esteve a cargo de Prurient, senhor que consta ser bastante simpático em privado mas que em palco é uma besta colossal, atirando-se de um lado para o outro de forma a captar o melhor feedback possível, gritando coisas incompreensíveis por cima de uma camada de noise puro e duro e destilando violência a cada segundo que passava. Senhores, chapas de metal a chocar umas contra as outras é bem capaz de ser a sonoridade mais metal que por ali (ou)vimos. Assim como o chiar que se ia ouvindo foi a melhor lavagem de alma possível. O noise libertar-nos-à, caramba. O noise libertar-nos-à. E após meia hora de castigo sonoro vem a magia eterna do drum n' bass, e depois de um falso final vem uma rave ruidosa... Que venha mais vezes. Ou, quem sabe, para o ano podiam trazer Merzbow.

Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
07/09/2016