O Milhões de Festa regressou a Barcelos no pico do calor do Verão e arrancou com o habitual “dia zero”, no dia 21 de Junho, apresentando concertos apenas no palco Taina - os concertos na Piscina, palco principal AKA Milhões e palco Lovers só arrancariam no dia seguinte. O palco Taina, que este ano se mudou para o recinto do festival, esteve colocado ao lado do palco principal e, nesse primeiro dia de actuações contou com um total de oito actuações. O palco abriu às 18h00 e pelas 19h00 actuou MADA TREKU, da Favela Discos. Já não chegámos a tempo de o ouvir, mas ainda vimos o rock sujo dos Vozzyow, galegos que conseguiram reunir ao redor do Taina uma pequena aglomeração de público atento. Entre concertos ouviu-se um interessante diálogo entre electrónica e trompete (a informação não constava no programa oficial) e seguiu-se depois o projecto nacional PO+AL. Este é um duo que junta Pedro Oliveira na bateria (ex-Green Machine, peixe:avião e Dear Telephone) e Alexandre Soares na guitarra eléctrica (sim, esse mesmo, o histórico que passou pelos GNR, Três Tristes Tigres e Osso Vaidoso). A dupla desenvolveu uma longa exploração dialogante, assente na improvisação, entre os riffs da guitarra de Soares e a bateria de Oliveira, ambos adjuvados por efeitos electrónicos. A proposta prometia muito, o resultado não soou muito interessante, ganhando forma de rock genérico – também o público se mostrou globalmente desinteressado. Entre os concertos ouviu-se um ensemble numa exploração “new age” irónica (também não estava no programa e aquilo também era pessoal Favela Discos, certo?).
Seguiu-se depois uma das actuações mais esperadas da noite, com os americanos Eat the Turnbuckle. A sua música assenta num clássico rock pesado com letras sempre à volta de uma temática muito específica, essa magnífica instituição americana que é o “wrestling”. Se o seu hard rock não é memorável, a sua actuação é: entre as músicas os membros fazem breves combates encenados, simulando algumas cenas típicas da luta livre americana. O público divertiu-se, até houve um breve “mosh”. Voltando a música, actuaram seguidamente os portugueses 10.000 Russos. O trocadilho com o nome de Demis Roussos é divertido, sim, mas é bom lembrar que a sua música também vale a escuta, especialmente nos Aphrodite’s Child. Tal como essa banda de Roussos e Vangelis, também o trio português desenvolve uma música psicadélica, mas pratica um rock mais bruto, guitarra, baixo e bateria em confronto, desenhando espirais sónicas. Essa avalanche sónica foi um dos pontos altos desse dia inaugural do Milhões. A música continuaria pela noite fora, com actuações de Aggrenation, Jibóia e DJs da Casa, mas já não ficámos para ouvir esses sons mais tardios. Nuno Catarino22 Julho
No primeiro dia “a sério”, com todos os palcos, a piscina do Milhões de Festa abriu com uma proposta nacional, a pop-doce-exploratória de Surma. Tendo passado uma semana antes pelo palco do Super Bock Super Rock, Débora Umbelino levou à borda da piscina as suas canções aparentemente frágeis, bem estruturadas e de travo apelativo. Não faltou “Masaai”, o único tema disponível até ao momento, e deixou água na boca para aquilo que aí vem. Seguiu-se a electrónica dos Wume, melhor quando apenas instrumental, menos interessante com a adição da voz. Contudo, a festa só arrancou com a chegada de Nicola Cruz. O equatoriano mostrou a sua electrónica dolente com travo sul-americano e conseguiu agregar o povo a dançar à frente da piscina, concretizando o momento mais festivo da piscina do primeiro dia. Chegou depois Nan Kolé, que aumentou os BPM com o seu afro-techno, encerrando a piscina com electrónica mais pesada (pensem num pós-Buraka mais abstracto).
A música continuou no Palco Taina. Não chegámos a tempo de ver Uppercut, mas fomos espreitar os Melandrómena e o seu hip-hop galego, enérgico e divertido, onde até houve uma “Cumbia do vinho verde”. O Taina fecharia com uma inusitada “Rádio Popular” de Paulo Cunha Martins, dj set que combina pimba alternativo com alguns clássicos românticos estrangeiros (como Demis Roussos, sim).
Abrindo o palco principal, actuaram os portugueses Evols: Carlos Lobo (guitarra e voz), França Gomes, Vítor Santos, Rafael Ferreira (guitarras) e Jorge Queijo (bateria). O concerto abriu em forma de homenagem, com a interpretação de “Dream Baby Deram” dos Suicide – bonito tributo a Alan Vega, recentemente falecido. Após essa entrada reverencial, o quinteto apresentou os seus temas originais, onde se incluiu a excelente “Shelter” (aquela letra “girl, I want you to know…” tem algo de clássico). O som do grupo é definido pela massa compacta das guitarras e o grupo o seu rock exemplar. Já o palco Lovers seria inaugurado com o hip-hop dos americanos Goth Money Records – na noite seguinte tocariam em Lisboa, na ZDB. A crew esteve representada por apenas dois membros (Black Kray e MFK Marcy Mane) e ao longo da actuação foram lamentando os vários problemas que tiveram durante a viagem para Portugal (telemóvel perdido, computador avariado) e a prestação musical terá sido disso reflexo, com pouco fulgor. O público também não se mostrou particularmente entusiasmado. Ficou prometida a visita da família completa, para breve.
De volta ao palco principal, actuaram os ingleses Sons of Kemet. Ao leme, no saxofone tenor, estava Shabaka Hutchings; na tuba, não estava o virtuoso Oren Marshall, membro original da banda que entretanto saiu, mas o seu substituto, Theon Cross; e o apoio rítmico estava assente nas baterias de Seb Rochford e Tom Skinner. A configuração instrumental parte de uma natureza jazz, a música é original, com raízes africanas. O quarteto desenvolve uma música altamente enérgica, assente nas frases do saxofone, repetidas em crescendo enérgico, secundado pela tuba, que neste contexto acumula funções: cumpre o duplo papel de substituição de contrabaixo e de segundo solista; e a dupla de baterias intensifica o carácter altamente rítmico desta música. O público foi desde cedo conquistado e não escondeu a sua completa devoção. Temas como “Play Mass” fizeram o público vibrar, dançar, e mesmo em momentos mais relaxados, mesmo durante o solo da tuba, o público relevou uma atenção reverencial. É incrível ver uma banda de raíz jazzística, que não cede a facilitismos, que nem sequer toca covers rock, a fazer a festa e a conquistar o público de um festival destes (quantos dos presentes já teriam comprado um disco de jazz na vida?). É certo que a margem para a improvisação é limitada, mas exemplos como os Sons of Kemet ou Kamasi Washington mostram que é possível produzir jazz original e levá-lo a um público mais jovem e alargado.
Pelo palco Lovers passou o trio Marshstepper + HHY + Varg, que apresentou uma electrónica arrastada e experimental, combinando um som industrial e vocalização metal. De regresso ao palco Milhões, chegou de vez de actuar um dos nomes maiores desta edição do festival: os suecos Goat. Combinação de ritual xamãnico e explosão rock, experimentação tribal e eficiência pop/rock, o grupo de Korpilombolo apresentou-se com as habituais máscaras, num espectáculo que foi além da música, teve também uma forte componente visual. No palco Lovers seguiram-se The Bug presents Acid Ragga with Miss Red e Cheryl, mas já não ficámos para assistir a esses espectáculos mais tardios. Nuno Catarino23 Julho
O segundo dia de piscina abriu com a actuação da dupla Filho da Mãe & Ricardo Martins. Em vez do habitual dedilhar da acústica, vimos Rui Carvalho na guitarra eléctrica em confronto com a bateria de Martins. A estes juntou-se em palco Óscar “Jibóia”, na manipulação electrónica. Foi um concerto breve, enérgico, mas menos mágico do que as prestações acústicas que já ouvimos de Filho da Mãe em versão desligada da corrente. Seguiram-se os Big Naturals, com um rock pesado pouco memorável. Já os We Are Match mostraram um indie pop/electrónico apetitoso, uma das propostas mais interessantes da tarde. O segundo dia de piscina fecharia com o dub de Adrian Sherwood.
O palco Taina abriu com Marvel Lima (não deu para ver). Já os Quelle Dead Gazelle explanaram o seu diálogo efervescente de guitarra e bateria, rock fresquinho. Ainda no Taina, os Riding Pânico exibiram o seu rock ancorado em guitarras, baixo, teclas e bateria. São frequentadores regulares do festival e certamente estavam confortáveis no Taina com aquele ambiente de familiaridade, mas o fulgor da sua música mereceria um palco maior, um horário mais tardio e mais público (aquele que assistiu ficou definitivamente conquistado, se ainda houvesse dúvidas).
O palco Milhões abriu com os Sun Araw, numa actuação que sofreu com problemas técnicos. Numa versão em trio, o projecto de Cameron Stallones que nos conquistou com discos como “Sun Ark” e “On Patrol”, levou ao palco em Barcelos a sua combinação de experimentação desbragada e eficiência pop. A música não soava mal, mas a actuação apresentou pouca energia. No palco Lovers Domenique Dumont mostrou a sua electrónica, com sabor de “french touch”, que meteu o público a dançar descontraidamente. Seguia-se no palco principal a actuação dos The Heads, grupo liderado por Paul Allen, no activo desde 1990. No palco Milhões os ingleses explanaram o seu rock psicadélico pesado, sempre em alta intensidade. Confirmando o motivo de serem nomes grandes do cartaz, cumpriram o seu papel com todo o profissionalismo. De Londres veio GAIKA, que recentemente fez capa da revista Wire e apresentou em Barcelos a sua electrónica urbana, misto de beats “dark” e vocalização vigorosa. Mas a verdadeira festa só chegou quando subiram ao palco Milhões com os brasileiros Bixiga 70. O ensemble veio de São Paulo à “terrinha” para espalhar muito “groove” e fez o público dançar com a potência daqueles sopros. Já não conseguimos assistir às actuações de Islam Chipsy & EEK e Discos Extendes, mas ouvimos relatos maravilhados da actuação de Chipsy. Nuno Catarino24 Julho
Paulo Furtado aka The Legendary Tigerman fechava a época balnear da piscina do Milhões com aquele que foi o DJ set com menos afluência de que há memória na história das águas da mesma. Seria mentira dizer que mil vezes nos cruzámos com dj sets de Paulo Furtado, e ainda que tenha navegado até territórios não tão conotados à sua persona (uns quantos devaneios hip-hop), a escolha de discos, e sim, ouviram-se muitos em vinil, por causa dos graves, recaiu, como se esperava, maioritariamente na fauna por onde o homem tigre normalmente se move: clássicos rock e clássicos blues salpicados com passagens como aquela que nos proporcionou em “Ghost Rider” dos Suicide — que deus te tenha, Alan Vega — logo após “From Her to Eternity” de Nick Cave.
Pese umas passagens meias encavalitadas, não se pode pedir muito melhor de alguém que não vive propriamente para o papel de passador de discos. Competente, portanto, e provavelmente o primeiro DJ na piscina a não envergar uma camisa florida/tropical no set. Tinha era de ser do róque: a wife beater no tronco, as calças quasi-boca de sino nas pernas e os Aviator a cair no nariz impedem que esteja a mentir.
Ficar até ao final do dia na piscina vai obrigatoriamente resultar em decisões apertadas no que ao resto do festival diz respeito: ir até ao palco Taina ouvir o que por lá se passava e apostar na gastronomia local, ou buscar conforto para o estômago num qualquer restaurante da cidade? A escolha recaiu no segundo e foi na companhia de belos espécimes femininos — mas não descurando também as masculinas, incluindo uma estrela rock local — que se perderiam os primeiros concertos da noite enquanto se degustava o prato escolhido: a francesinha. Aconteceu tudo na Vincentina e a bomba calórica estava perfeita. Com um molho a fazer lembrar a textura mais aveludada e a cor mais amarela e menos vermelha das francesinhas de Braga (Taberna Belga, Real Taberna, etc.), podemos dizer que estamos logo na presença de um prato vencedor. É bom que se saiba: há muito que as francesinhas não são melhores no Porto. Afinal nem tudo é melhor lá. Mas quase.
El Guincho já tocava quando finalmente se deu a entrada no recinto. Se com o último álbum, “Hiperasia”, houve uma finta à sonoridade que o caracterizava até então, não será errado dizer que no registo ao vivo a música de Pablo e amigos regressa às origens e à fórmula que foi outrora vencedora, mas que agora se encontra, infelizmente, gasta. Um pouco como o futebol da selecção do seu país natal: demasiado banal e previsível para sair vencedor frente a conjuntos mais frescos.
O público mostrou-se amorfo ao longo de praticamente todo o concerto, ondeando aqui e ali porque realmente os ritmos assim puxam para tal, mas sem o entusiasmo ébrio a que os corpos se entregariam se a actuação tivesse acontecido já com a noite bem estabelecida. Contudo, e também já aqui se previa que tal acontecesse, com o aproximar do final do espectáculo as canções finalmente ganharam corpo e forma. A solarenga "Bombay" daria o mote para os primeiros passos de baile, os sorrisos passavam a estender-se a todo o anfiteatro e a estocada final viria com aquela que Pablo Díaz-Reixa diria ser o hino do festival: "Antillas".
E que não haja dúvidas: "Antillas" é o hino do Milhões. É a canção que todos abraçamos como nossa, naquele maravilhoso 2010 em que El Guincho se deu a conhecer ao público português e este retribuiu da forma acolhedora como só nós sabemos. É a canção que grita verão, grita sol, grita cerveja gelada em esplanadas, grita o crowd-surf, mas sobretudo grita a celebração do amor na comunhão entre público, artistas e promotores da qual o Milhões sempre se caracterizou. E, tal como da primeira vez, o comboinho voltou a circular endiabrado por entre o público. Foi o final ideal para um concerto que, no seu todo, esteve a milhas de atingir a intensidade daquele que se (ou)vira na anterior passagem pelas margens do Cávado.
Sendo eu um não apreciador de metal confesso, especialmente quando este vai para os lados do thrash, talvez nem tanto por não gostar de quem o pratica, mas porque abomino a combinação sapatilhas brancas e ganga integral de quem a este tipo de concertos costuma assistir, era natural que estivesse algo de pé atrás em relação aos Oozing Wound. Posto isto, e apesar de a banda até não querer ver-se a si mesma etiquetada como do thrash metal, Barcelos precisava mesmo de uma banda a tocar “rápido” para a despertar para toda a festa que ainda se iria sentir ao longo da noite.
E o trio de Chicago cumpriu com distinção o seu importante papel na categoria “jarda praticada por cabeludos” que o Milhões de Festa não tem descurado nunca ao longo das edições. Num universo não assim tão distante de uns Gama Bomb no mesmo palco há uns anos, mas a uns anos luz de distância no que à qualidade musical diz respeito — ou não estivessem na Thrill Jockey, sinónimo máximo de “dar tudo” nas suas edições —, os Oozing Wound mostraram como se anima facilmente uma plateia meia dormente. As longas melenas de guitarrista e baixista abanavam de um lado para o outro como manda a lei enquanto o baterista destruía o seu instrumento da melhor maneira que conseguia. O jogo de luzes, também típico deste género de actuações, ajudava à viagem semi-espacial, com silhuetas recortadas entre os amarelos e os azuis e os vermelhos que se fundiam e nelas incidiam. Será exagerado dizer que a estética lembraria o filme Suspiria porque estaria claramente a fazer uma alusão fácil à bonita t-shirt de Goblin com que Zack Weil envergava. Pronto, já exagerei. Por cima da t-shirt manteve-se sempre uma indomável e incontornável Gibson Flying V, ao mesmo tempo a mais incrível e a mais azeiteira das guitarras, combinação sempre vencedora nos temperos de grande parte das bandas de metal.
Voltávamos ao palco grande para aquele que seria provavelmente o momento mais aguardado, não só do dia mas também de todo o festival. Dan Deacon habitua-nos agora à sua presença em solo nacional. Felizmente refira-se, já que depois da passagem por Serralves, em 2009, tardou a voltar. Em boa altura o fez, primeiro para o NOS Primavera Sound 2015 e depois, já neste 2016, numa viagem até aos Açores, para o festival Tremor, também ele com assinatura Lovers & Lollypops. Um pouco à semelhança de El Guincho, também Dan Deacon já teve melhores momentos em estúdio. “America”, editado em 2012, é francamente fraco, e “Gliss Riffer”, lançado no ano passado, não é assim tão uma melhoria quando comparado. Estarei provavelmente a ser injusto, e não me incomoda que me acusem disso, mas quando alguém cria A obra-prima de seu nome “Bromst” haverá sempre uma herança pesada à qual apontar o dedo.
Pouco disto interessa, contudo, quando nos concertos de Dan Deacon o alinhamento é a parte descartável. A festa, essa sim, é o único elemento necessário, e estando nós no festival onde se espera que haja Milhões dela, bem, já estão a perceber onde quero chegar.
Dan Deacon apresenta-se por detrás de um emaranhado de pedais e parafernália electrónica em geral e faz-se acompanhar apenas por uma baterista a dar o necessário toque orgânico às composições. E se o concerto arranca de forma convencional — seja lá o que “forma convencional” fôr quando se fala de Dan Deacon — rapidamente o músico está, qual profeta, a separar as águas e a ordenar que se abra um caminho no meio do público. Somos todos convidados a baixar os corpos — lembram-se de Connan Mockasin em 2012? — enquanto no meio do mar que se abrira há malta a dançar. Quando a torrente de gente se volta unir a festa prossegue em ritmo caótico, crowd surf intenso onde até malta em canadianas se viu, bonecos insufláveis a saltar, as bolas amora da piscina em invasão de palco, e tudo isto ao sabor das camadas de psicadelismo electrónico que Dan Deacon constrói e descontrói por baixo da sua voz de desenho animado. E a figura de Dan Deacon não anda muito longe de um desenho animado: meias amarelas, calções vermelhas e uma camisa de manga curta branca com listas azuis, combinadas com os óculos redondos na cara bolachuda, fazem-nos pensar em Dan Deacon como uma espécie de Dexter hipster — de Dexter’s Lab, entenda-se, não confundir com o psicopata homónimo que todos gostaríamos de ser. E nós, ali em crowdsurf efusivo e contagiante, fomos cobaias na sua experiência laboratorial. Acho que nos saímos bem. O ponto mais alto musicalmente? Obviamente “Feel The Lightning”, muito mais presente nas memórias, e nos pulmões em pleno a que se sentiu, do que as magníficas canções de 2009 que vamos deixando para trás em prol da superioridade da festa que Dan Deacon organiza concerto após concerto. E que concerto que este foi, ele que marcou o final de uma já longa digressão.
Nova viagem até ao emparedado da muralha. Desta vez teríamos o prazer de entrar no inferno de Ho99o9 (não se escreve “The xx” mas lê-se “Horror”), dois demónios em palco secundados por um baterista para a muita aguardada estreia em Portugal. O “hype” à volta desta actuação era gigante. Na falta de uns Death Grips, ou de uns Odd Future não-tão-agressivos-musicalmente-mas-tão-ou-mais-importantes-no-movimento, esta dupla representa aquilo que de melhor o cruzamento entre o rap e o hardcore nos podem trazer, obviamente não só na vertente estúdio, mas sobretudo para a partilha da sua música bem juntinho de quem a ouve. Parte performance, parte música, não há como escapar às comparações óbvias, se já ali atrás foram mencionados os Death Grips por serem o nome mais sonante desta espécie de crossover, o complicado era não associar a presença em palco às das influências herdadas do hardcore, e se mencionar os Bad Brains é demasiado óbvio — por tudo —, não poderia também faltar a colagem ao enorme Henry Rollins no que à presença em palco diz respeito. Se Eaddy é quem assume a função de MC-mor e o faz com uma leveza incomparável, theOGM, por outro lado, é quem assume o papel mais cénico, deslizando ao longo do palco por baixo de um vestido de transparências azuis e vindo até bem perto do público com uma luz por cima das suas longas rastas, numa performance a lembrar aquela incluída no concerto de Mykki Blanco, em 2013, mas sem o genial remix de Cyril Hahn para “Say My Name” das Destiny’s Child. No final do concerto e tal a descarga de adrenalina, muitos tinham apenas na ponta da língua o adjectivo “brutal” para descrever o que ali se havia passado.
Da desilusão Nidia Minaj não rezará certamente a história deste Milhões de Festa: a Príncipe Discos tem nas suas fileiras gente muito talentosa, e ela não será excepção, mas não é definitivamente a passar música pimba que se salva um set. Nada contra, como é óbvio, mas ainda há menos de um mês tinha visto Marfox fazer o mesmo. Umas transições mais suaves para a próxima. Vale?
Ele vive permanentemente em clima de festa, e nas datas do Milhões até está duplamente pois celebra o seu aniversário — Parabéns, Fábio, és o maior! —, como tal não seria de estranhar que a última noite do festival tivesse também um pouco da sua loucura. Falo, claro está, de Homem-Fino/DJ Quesadilla que juntamente com uns quantos amigos proporcionou mais um inusitado momento para a história do festival. Que eu tenha conhecimento, não houve guitarradas em cima de contentores no backstage, mas houve uma boombox séc. XXI (uma gigante coluna bluetooth, portanto) a encerrar os bares e barraquinhas ao som de grandes êxitos da música pop, uns mais melosos que outros, mas todos absolutamente memoráveis pela forma como todos os tinham na ponta da língua. O Milhões também é isto: um grupo de malta que decide fazer a sua própria festa, ao qual se juntam personagens em tronco nu que aparecem do nada para pagar finos (ou copos de vinho a preço de saldo) ao mesmo tempo que malta bem adulta rebola pelo chão de forma visivelmente feliz, para não dizer embriagada, pelo cenário a que vai assistindo. Acontece todos os anos, esperemos que para sempre.
O festival terminaria ao som dos DJs Yeah e com a invasão de palco por parte dos habituées nesse tipo de andanças. Não havia copos à pala no backstage, como em outros festivais, o que é francamente pena, mas às seis da manhã também já era hora de pequeno-almoço com galão e torradas. No after de Barcelinhos.