Uma onda de calor toma conta do país inteiro, meros dias após uma onda de amor verde e vermelho ter tomado conta do mundo via Paris. O Super Bock Super Rock Ergue-se uma vez mais no Parque das Nações, finda que está a aposta no Meco, na poeira, nas filas de trânsito e naquilo a que os festivaleiros gostam de chamar "contacto com a natureza". Mas sabem que mais? Mil vezes o conforto do betão e de uma cama fofa em casa do que o arranhar das costas numa tenda mal erguida. O que faz um festival é a música... e, na sua edição de 2016, as propostas apresentadas pelo SBSR não foram um passo em falso.
Dia Um
Cabe a Surma as honras de abrir o festival, a menina que tem andado a crescer e a angariar loas de tudo quando é sítio - dizem-nos, em conversa informal, que lá fora se diz que Débora Umbelino é aquilo que Renato Sanches é na Selecção Nacional. Há quem lhe erga cartazes ressalvando a sua beleza, enquanto os sons delicados de uma harpa ecoam o mais que podem pelo palco EDP, antes de entrar em cena uma electrónica mutante e anti-pop aliada a vocais Björkianos. Estamos a ver Surma no Super Bock Super Rock, mas poderíamos perfeitamente estar a vê-la no Out.Fest. "Maasai", o único single presente no Bandcamp, fez mexer algumas ancas e corações; mas, no geral, esteve tudo perfeito. Do outro lado, Alek Rein dava um concerto eléctrico, de tons psicadélicos, sob um bafo fervente que obrigou os presentes a procurar o lugar mais perto possível da sombra, havendo ainda uns quantos resistentes sentadinhos nos degraus da MEO Arena... (Paulo André Cecílio)
O palco EDP ficou instalado debaixo da famosa pala do Pavilhão de Portugal, o que permitiu que quem tenha sacado convites e acreditações tenha podido dizer "vim ver concertos à pala" (desculpem, era difícil de resistir). Foi debaixo dessa pala que vimos os Villagers, a banda de Conor O'Brien que encheu aquele palco de folk sentimental, plena de emoções. A configuração instrumental da banda é atípica mas eficiente: como base há uma guitarra acústica, harpa, teclados, contrabaixo e bateria. Combinaram aquela dose certa de doçura sentimental com eficácia pop e foram conquistando o público, funcionando como warm-up para a descarga emocional que haveria de chegar pela noite adentro.
Após encher o bucho, lá regressámos ao palco EDP, agora para assistir a uma das actuações mais aguardadas do festival. Kurt Vile levou ao festival do Parque das Nações o seu rock de travo americano bem desenhado (é exagerado encontrar paternidade directa em Neil Young?). A banda mostrou-se enérgica, a setlist equilibrada. E não faltou a viciante "Pretty Pimpin", cantada por quase toda a gente. A fidelidade do público, essa, não se confirmou: quando se aproximou a hora de início da actuação dos The National assistiu-se a uma debandada generalizada.
Já no palco Super Bock, AKA Meo Arena, ex-Pavilhão Atlântico, chegou a vez dos The National. Anunciando a entrada da banda em palco, ouviu-se The Smiths: "Please, Please, Please Let Me Get What I Want". E eles deram mesmo aquilo que nós queríamos, apesar de terem abusado dos temas mais recentes. O frontman Matt Berninger tem agora cabelo comprido, mas continua a fazer aquilo que sempre fez: é o pastor evangelizador de canções de rock adulto emoções à flor da pele. É verdade que eles trabalham no assunto há mais tempo, mas a nossa relação tem cerca de dez anos, desde Alligator, e apesar de algum afastamento nos dois últimos dois álbuns, não esquecemos a avalanche emocional que foi sobretudo aquela maravilha chamada "Boxer".
Houve "Fake Empire" e, sobretudo, a "Slow Show", a providenciar o arrepio: you know I dreamed about you for 29 years, before I saw you. Mas também as mais recentes – como "I Should Live In Salt" (logo ao início) e "Pink Rabbits" – mostram que eles continuam a saber fazer grandiosos hinos a partir do pequeno sentimento pessoal. O público, globalmente atento, respeitador e conhecedor, ia respondendo com entusiasmo. Com "Mr. November" chegou o pico emotivo, explosão total. A banda tocou depois mais dois temas, despedindo-se de forma morna.
Apesar da sobreposição dos horários (um dos grandes flagelos do mundo moderno), ainda deu para espreitar a parte final da actuação de Samuel Úria no palco Antena 3. Assistimos aos dez minutos finais e tivemos pena de não termos visto mais daquela boa energia rock. Já não se conseguiu ouvir material do recente (e óptimo) Carga de Ombro, mas deu tempo para se escutar um clássico Uriano, "Tigre Dentes de Sabre", antes do aplauso final. (Nuno Catarino)
Após a fúria emocional dos National ainda houve tempo para Disclosure, tendo a dupla britânica composto a MEO Arena q.b. para mais uma sessão de música house destinada àquelas pessoas que raramente ouvem música house (a não ser que a rádio do carro sintonize a Orbital e mesmo assim...). Com "White Noise" começa a fazer-se a festa, até que à segunda canção apenas o som vai abaixo (Korn, o que é que vocês fizeram?) e regressa pouco tempo depois, após os coros de um público que acusou o Grande Éder de os ter fodido. Até final houve espaço para trazer ao palco Kwabs e Brendan Reilly e para aquele malhão intitulado "When The Fire Starts To Burn" mas, infelizmente, não havendo novidades em relação ao ano passado - quando assinaram um espectáculo fenomenal no NOS Alive - muito não houve a retirar daqui. (PAC)Dia Dois
Há um som que entra pela zona de imprensa adentro, sem pedir licença a ninguém; um som que vem do Médio Oriente, da diáspora cigana, do Brasil quente, da Lisboa sardinhada em altura de Santos Populares. É o som dos Pás de Problème, conjunto movido a speed e a uma bebida misteriosa a que chamam "Padrada", colocada garbosamente dentro de um garrafão defronte do palco. Sete homens em palco a fazer a puta da maior festa que o Super Bock Super Rock viu até agora, com rodas-vivas no meio do público, com um diálogo muitas vezes imperceptível tamanha é a velocidade, com trompete e saxofone e bateria e baixo e, caramba!, com uma joie de vivre que é raro ver num festival destes - até serem expulsos do palco sem apelo nem agravo... Podemos dar-lhes o nosso número de telemóvel para que toquem no nosso casamento?
Logo depois, percebemos finalmente o motivo da saída súbita dos moços: Petite Noir sobe ao palco antes da hora marcada, contrapondo a alegria anterior com um pós-punk tenso e ruidoso onde o grave é rei e senhor; infelizmente, é tão insípido que não podemos deixar de pensar que a ele só lhe basta um hit para ser os novos Bloc Party. Quando pega na guitarra, e a esta se junta um ritmo boom-bap simples, ainda desperta algum interesse, prontamente engolido pela roupagem "grandiosa" com que a sua sonoridade se apresenta. Um bocejo. Um longo, e horrível, bocejo. (PAC)
A caminho do festival ouve-se no auto-rádio, via Antena 3, os Pista a tocarem "Puxa", talvez o maior dos seus pequenos hinos rock. Pensámos que já não vamos conseguir ver muito mais, mas afinal quando se chega ao palco Antena 3 ainda o concerto vai a meio. O grupo começou como duo (com Cláudio Fernandes na guitarra e Bruno Afonso na bateria), passou a trio (com a inclusão da guitarra extra de Ernesto Vitali) e no palco do festival já estavam transformados em quarteto, com o acrescento de Alex D’Alva Teixeira na voz e animação geral. Os Pista exibiram a sua eléctrica combinação de riffs de guitarra viciantes com ritmos intensos, repetidos de forma obsessiva. Os barreirenses inventores do bike-rock deram um concerto frenético, onde nem faltou crowdsurf de D’Alva Teixeira.
Já no palco principal fomos averiguar a que soam os Bloc Party em 2016. Ficámos a saber que soam a uma mescla de indie rock festivo com electrónica pop dançante. O líder Kele Okereke continua a manter a pose e a coolness, só a música não mantém a mesma frescura. Lá pelo meio, obrigatória, aquela música do anúncio da Vodafone ("Banquet"), que faz toda a gente dançar. Se já em 2005, quando o mundo os descobriu com Silent Alarm, não eram propriamente entusiasmantes, dez anos passados a coisa não melhorou. (NC)
Eis que O Homem surge em palco, o tronco nu, a carne já algo flácida pelo avançar da idade, de músculos ainda visíveis e impressionantes, e uma atitude que não esmoreceu com o passar do tempo ou da absurda quantidade de drogas que tomou ao longo da sua vida. É Iggy, último nome Pop. James para os amigos. Deus para o resto do mundo rock. Saracoteia a anca, pede o amor do público, devolve-o em dobro. A lendária Iguana voltou a Portugal e ao SBSR para uma perfeita sessão de pancadaria, desta feita a solo e não com os seus Stooges, que se foram perdendo nos últimos anos para outros desígnios...
...Daí que Iggy, Pop, Deus, seja o foco das atenções nesta segunda noite de festival, levando até à MEO Arena várias gerações, não tendo sido possível, do nosso local, vislumbrar exactamente quantos estavam presentes, porque tal como muitos outros também o Bodyspace foi para as filas da frente sentir na pele a luxúria e a violência destes riffs salva-vidas, não tendo por um segundo olhado em redor... Nem se esperaria outra coisa. Iggy Pop é um buraco negro de atenção: suga todos os olhares para si e para a sua vitalidade inabalável. "No Fun"? "No Fun" o caralho, que não há neste momento ninguém que não se esteja a divertir.
Alinhamento gigante: a "No Fun" segue-se "I Wanna Be Your Dog", a melhor canção de amor da história da humanidade, já com a loucura instalada entre os presentes - pulos, encontrões, cotoveladas, e os dispensáveis telemóveis. E depois dupla viagem aos seus primeiros discos enquanto Iggy Pop; o hino punk que é "The Passenger" e a magnífica "Lust For Life", a mesma que os Jet, julgávamos nós, tinham arruinado para sempre. Nada disso. É Iggy Pop, e ninguém o há-de matar. Por mais que tentem. Só ele poderia cantar uma canção como "Sixteen", daquela forma com que o fez, sem ser acusado de pedofilia. Aquela banda que ali está em palco com ele é só o rastilho, a pólvora é toda ele. "1969", "Sister Midnight", e o cabaret de "Nightclubbing" surgiram, esplendorosas, pela MEO Arena. Para o encore estava reservada "Search And Destroy", já depois de Deus Iggy se ter passeado pelo público, e quem ainda tinha forças apagou-as todas... Só o suor com que dali se sai explica o que foi este concerto de Iggy Pop: um verdadeiro assombro. Assombro. Assombro. Assombro. Repitamo-lo.
Ao entrarmos de novo na MEO Arena para assistir aos cabeças de cartaz propriamente ditos do segundo dia - os Massive Attack -, já depois de meia dúzia de garrafas de água fresca no bucho, somos confrontados por uma espiral noise que serpenteia pelas colunas e acaba no gesto primordial do ritmo. Depois de Iggy, este era um concerto para se ver sentado, nas laterais, acendendo um parpalho e deixando que o hip-hop consciente e envolto em névoa, a partir do qual se criou um novo género musical, inebriasse os nossos sentidos.
Nada feito; os Massive Attack não quiseram ficar atrás de Iggy e ofereceram um espectáculo cativante, onde a única falha foi a presença dos Young Fathers, com quem colaboraram este ano com um novo EP. Não que haja algo de errado com o colectivo escocês. O problema é que para eles entrarem houve muitos malhões dos Massive Attack que tiveram de ficar de fora... Eles que, para além de hip-hop, também sabem ser rock: que o digam as guitarras rasgadas de "Future Proof". E que também estão, como sempre estiveram, sempre alerta. Para além das homenagens previsíveis às vítimas de Nice, houve referências à tentativa de golpe militar turca e - durante a bela "Inertia Creeps" - uma série de headlines a desfilar pelos ecrãs, onde a mais celebrada foi, naturalmente, Portugal é campeão europeu...
Começámos com ruído e com ele terminamos: "Safe From Harm" em registo louco, informação correndo a um ritmo frenético, dados perdidos no horizonte informático; "Unfinished Sympathy" - considerada por muito boa gente como uma das melhores canções de sempre - deu por terminada esta sessão fortemente politizada, num mundo que cada vez o é mais e cada vez mais faz merda por sê-lo. Que voltem com os clássicos todos, por favor. (PAC)Dia Três
Num dia onde o hip-hop foi rei e senhor, pareceu quase um sacrilégio assistir à estreia dos FIDLAR em Portugal, eles que da nova leva de bandas que cruzam o sentimento garage com a fúria punk são uma das mais interessantes. Deveríamos ter abandonado o palco EDP para picar Mike El Nite, como o fizeram certos alverquenses, em vez de ter saído a correr da sala de imprensa mal escutamos o primeiro "oláááá..."? Nem por sombras. O quarteto deu um concerto frenético, iniciando com uma versão de "Sabotage", dos Beastie Boys, passando por "canções sobre beber cerveja" (um grande bem-haja) e terminando com o hino à decadência que é "Cocaine", já depois de terem dado uma perninha pelo hino americano. Só faltou "Bad Habits" para o festão ser completo. (PAC)
Os Orelha Negra começaram o concerto a tocar atrás de uma cortina semi-transparente. Só se viam vultos e sombras, ouvia-se a música, sabíamos que eles estavam lá, mas não estavam completamente visíveis. Ao fim de duas músicas a cortina cai. É nesse terceiro tema que o público se mostra mais expansivo, é nesse terceiro tema que se ouve um sample de "I Put a Spell On You" – o tema de Screamin’ Jay Hawkins, também popularizado por Nina Simone. Sabemos que eles nos querem enfeitiçar com aquela música narcótica, música instrumental de base e cadência hip-hop, que combina a raiz instrumental clássica numa mescla orgânica com samples. Entre os gira-discos de Sam The Kid e DJ Cruzfader e a base rítmica de Francisco Rebelo (baixo), João Gomes (teclados) e Fred (bateria), nasce uma música fluída, espécie de hip-hop instrumental dinâmico, onde há samples em diálogo directo com os bons velhos instrumentos clássicos. Ouve-se Otis Redding (já revisto por Kanye e Jay-Z), ouve-se Drake ("You Used To Call Me On My Cell Phone"), ouve-se Mind Da Gap (um excerto daquele clássico "Todos Gordos"). Público conquistado.
Entre o final de Orelha Negra e o início de De La Soul, há um breve intervalo, que resolvemos aproveitar para espreitar a actuação de Capicua. Quando chegámos ao palco EDP (o da pala), já o concerto está a chegar ao fim, mas ainda se ouve "Maria Capaz", hino feminista sem merdas. Nesse tema, ao lado de Capicua, além da companheira de sempre M7 (AKA Beatriz Gosta), estão várias outras vozes femininas. Segue-se "Liberdade", que inclui citação directa de Sérgio Godinho e lança um poderoso verso: é de fazer atirar as pedras da calçada (legitimando a acção violenta em manifestação). Depois começa por se ouvir o início do clássico "Rapper's Delight", dos Sugarhill Gang, em jeito de introdução à obrigatória "Vayorken", que no seu registo nostálgico/sentimental funcionou como despedida feliz. (NC)
À hora do início dos GNR, são poucos os que se aventuram até ao palco EDP, até porque à mesma hora se desenrolava o concerto - com 25 anos de atraso - dos De La Soul, na MEO Arena. Mas, pouco a pouco, o espaço foi ficando bem composto para receber de braços abertos Rui Reininho e seus comparsas, que mesmo com décadas de rock nas pernas continuam a saber fazer como se fossem putos. Rei Reininho, vai cantando o público. Só faltou mesmo a coroa na cabeça. Foi Psicopátria o mote do concerto, tocado de uma ponta à outra, oportunidade para ouvir a magnífica "Dá Fundo" ao vivo, pela primeira vez na vida, anos e anos após viagens de família com o vamos p'rá piscina a bater forte no rádio do carro. E foi bonito ver várias gerações a cantar "Efectivamente". Efectivamente, os GNR são grandiosos. (PAC)
Após a dica prévia dos Sugarhill Gang, seguiu-se no palco principal do festival outro grupo gigante da história do hip-hop, os grandiosos De La Soul. No palco Super Bock (ou seja, na MEO Arena) os três MCs (e um DJ) fizeram a festa e fizeram, literalmente, toda a gente levantar as mãos ao alto - obrigando toda a gente a levantar os braços, até os fotógrafos de serviço no fosso. O fundamental álbum 3 Feet High and Rising, de 1989, teria necessariamente de ser revisitado. Posdnuos, Maseo e Dave cumpriram as expectativas. Ouviu-se "Potholes in My Lawn", ouviu-se "Me Myself and I" (algo diferente do original). Evocaram o passado, fizeram a festa e terminaram com toda a gente a dançar.
Após essa viagem ao passado, seguiu-se uma viagem ao presente do hip-hop. Kendrick Lamar subiu ao palco do ex-Atlântico e desde a primeira hora se percebeu que era ele a maior figura de todo o cartaz do festival. No ecrã, projectada durante todo o concerto, estava uma citação de George Clinton: Look both ways before you cross my mind. Apoiado por uma banda tradicional (guitarra, baixo, teclados e bateria), Kendrick debitou as suas canções com mestria, perante um público que já estava quase todo conquistado à partida e que não hesitou em demonstrar a sua devoção.
Editado no ano passado, o disco To Pimp a Butterfly dominou o mundo; neste sábado, Kendrick Lamar conquistou o Super Bock Super Rock. Houve "Bitch Don’t Kill My Vibe", cantada em uníssono. Também "King Kunta", claro (no meio do público, alguém segurava um cartaz onde se lia "Compton"). A obrigatória "i" também não faltou. O público, em delírio, confirmou Kendrick como rei disto tudo. A festa fechou no encore com "Alright", we gonna be alright, we gonna be alright. Acabou tudo bem, claro. (NC)