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Rock In Rio 2016
Parque da Belavista, Lisboa
19-20 e 27-29 Maio 2016//


Dia Um

Ei-los que correm de sapos na cabeça e noção remetida para o zero, na ânsia de conquistar um de três lugares disponíveis no afamado backstage, para quê?, não se sabe muito bem, mas eles correm e correm e atropelam-se e finalmente chegam junto das grades para reclamar o seu prémio. Foi assim que começou esta nova edição do Rock In Rio, a sétima por terras lusas. Foi assim que começou mais uma celebração do capitalismo espectáculo, marketing transformado em "evento cultural" e em slogans banalíssimos que muito provavelmente não enganam ninguém, nem sequer os fãs mais acérrimos de Gustavo Santos. Tudo por um mundo melhor..., um mundo onde possamos pagar uma batelada por uma t-shirt ou um chapéu alusivo que indique que fomos, que isso é sinal de poderio financeiro, como se não bastassem os 69 paus que muitos pagam para entrar (não todos: arriscamos dizer que mais de metade dos presentes no Rock In Rio, porque é assim que o Parque da Bela Vista enche, são vencedores de concursos e funcionários dos patrocinadores e convidados especiais). Consumam. Consumam. Consumam. Mas aplaudamos o Rock In Rio, porque são uma máquina que trabalha às mil maravilhas, uma máquina de morte cerebral e bolsista que (felizmente!) baniu os selfie sticks do recinto e proporcionou a estas famílias de classe média um momento único e maravilhoso do qual se esquecerão quando a timeline do Facebook avançar mais uns dias.

É claro que há música. "Música", entre aspas, e música, em itálico, de forma a exemplificar a sua importância vital na alma dos guerreiros poucos que se sujeitam a esta tortura de dois em dois anos, sem álcool e com uma trupe de dançarinos a embrutecer o silêncio com gritos toscos e um infindável repertório de êxitos recentes ou antigos junto ao local onde muitos procuram o mínimo de silêncio indispensável ao trabalho. No primeiro dia, houve os Sunflowers, duo portuense que muito tem crescido neste último ano e que tiveram a "honra" de abrir o festival e o Palco Vodafone, cuja programação lhe vale o epíteto de mini-Paredes de Coura. Carlos de Jesus e Carolina Brandão trouxeram uma muito necessária javardice a um festival certinho por força do seu punk rock transformado em surf ou o contrário, tendo actuado perante meia-dúzia de carolas e terminado a sua performance - já depois de todos os seus grandes sucessos - com a melhor canção de amor da história da humanidade: "I Wanna Be Your Dog", dos Stooges, após o amigo Frederico Ferreira dos amigos 800 Gondomar se ter juntado a eles no baixo. Mas os Sunflowers, porque são bons, não merecem um festival como este; merecem uma sala suja e repleta de adolescentes desajeitados que suem em bica e partam tudo a dançar.

Os mesmos adolescentes desajeitados que, por sinal, compuseram bem este mesmo palco durante Black Lips, que dentro desta nova vaga garage que já leva na boa uns 10 ou 15 anos são das piorzinhas. Valha a verdade, até deram um concerto porreiro; longe vão as travessuras de outros tempos (Porto-Rio, 2008), mas continua a existir uma salutar irreverência e um grau de cerveja no sangue invejável - e notório. Acabariam a noite num sítio sobejamente melhor: o Damas, na Graça, com xs Putas Bêbadas e os supramencionados 800 Gondomar, para um DJ set que, espera-se, tenha sido de arromba. "Bad Kids" podia ser a sua autobiografia, e para manterem a credibilidade deveriam escrevê-la nos mesmos rolos de papel higiénico que são atirados do palco durante o seu concerto. If that ain't real, I don't know what is!

Bem, nós explicamos: "real" é o ódio pelos Xutos & Pontapés e pelo seu desfilar de temas mortos e enterrados. Mas nem vale a pena bater mais no ceguinho. Que os Xutos e os fãs deles sejam muito felizes.

"Real" é, também, Bruce Springsteen. Porque não se consegue falar mal de Bruce Springsteen. Ele é o Boss, o patrão desta gente toda; uma linha ou palavra que seja em tom mais crítico, e somos despedidos do rock para sempre. Springsteen, o homem que criou uma carreira em torno do common man, o homem de esquerda apanhado nas malhas do capitalismo, a estrela planetária que nos fez a todos desejar ter nascido nos EUA. Mas no meio desta parada de exageros Springsteen está tão sozinho como esteve na passadeira, durante o início com "Badlands", rodeado de aplausos muitos. Em "Darkness On The Edge Of Town" o mito transforma-se, voltando ao assunto, em coisa real. Olhos negros mirando o infinito. A garganta trémula: Everybody's got a hungry heart..., tanto a dele como a da audiência. Três bandeiras da Bretanha erguem-se em fervor nacionalista, mas a noite é América, a América não-Hollywoodesca de potencial infinito e destruído pelas suas elites, a América das estradas e do céu e da liberdade, a de Whitman e de Ginsberg e de tantos outros poetas milenares. "I'm On Fire" traz à memória, num eco distante, os Suicide, os mesmos Suicide que ele tanto aprecia e que o influenciaram fortemente em discos como Nebraska, que surge pela primeira vez no radar da Bela Vista através de "Atlantic City", já depois do Boss ter acedido ao pedido de um fã para que se ouvisse "The Promised Land".

E, depois, todas as canções maiores que a minha, que a tua, que a vida dele. "Because The Night", num registo demasiado comovente para ser "real", a canção que todos se esquecem ser dele e não de Patti Smith; "Born In The USA", a canção que os conservadores se esquecem ser uma crítica ao país; "Born To Run", apresentada de forma eléctrica e majestosa, já o público há muito que se encontrava rendido; "Dancing In The Dark", com uma fã a subir ao palco para dançar com Springsteen... e o final com "Tenth Avenue Freeze-Out", uma versão de "Twist And Shout" e a solidão Woody Guthrieana de "This Hard Land", com todos os 67 mil ali presentes a desejar ter vivido um concerto não de duas horas e quarenta mas de cinco ou seis ou até mesmo dias consecutivos... Vivido - porque este é o rock de celebração da vida, da busca por uma melhor. Springsteen é o único que faz por cumprir o slogan do Rock In Rio. Que Deus ou qualquer outra entidade o abençoe. (Paulo André Cecílio)Lisboa acorda com a carícia violenta do calor, um bafo absurdo que avermelha a pele e retira qualquer vontade de trabalho. O dia pertencia aos Queen (ou, melhor dizendo, à banda de versões dos Queen que encabeçava o segundo dia de festival) e por toda a parte eram visíveis as t-shirts ou maquilhagens mais complexas aludindo à saudade que todos temos de Freddie Mercury. Mas não era preciso estar 32 graus para não termos qualquer vontade de ver o "musical" Rock In Rio, que na verdade é apenas e só uma punheta publicitária composta a pensar no povão, repleta de versões manhosas de grandes clássicos rock do antigamente e que pode ser descrito em apenas duas palavras: "vergonha" e "alheia". Toda a gente pára para ver um desastre, mas ninguém pára para ver o apocalipse. (PAC)

O Palco Vodafone foi o mais simpático desta edição do Rock in Rio, sem dúvidas. Nada contra os outros, mas muito a favor deste. É como se houvesse um festival só de Palco Vodafone, então o podemos chamar de Palco Principal mesmo.

De inicio, tivemos os Pista com um som de dançar até na chuva (longe de ter sido este o clima) o que é perfeito para anunciar o que estaria por vir. A banda veio directamente do Barreiro, por terem sido um dos vencedores do Vodafone Wild Card. Um género que me surpreendeu de certa forma, aliás, de forma certíssima. Uma espécie de rock tropical, com jeito de lambada. Gostoso.

Logo depois, vieram os Sensible Soccers, que já me deram provas suficientes do que me podem causar por dentro. Cá está mais uma. Criadores de uma ambiência espectacular, o quarteto do norte apresentou o segundo trabalho: Villa Soledade. E foi ali em Bela Vista, o lindo passeio no parque como num comercial de TV com vidas perfeitas. Performance memorável banhada com a luz solar só não mais intensa que o ritmo frenético do que ouvíamos. O alinhamento variou entre Villa Soledade e o antigo e mítico 8. Sorte dos que ousaram atravessar o recinto às 18h daquela tarde, para descansar na relva sintética. Aos demais - que não imagino o que estiveram a fazer -, os Sensible Soccers estão só a começar a digressão deste novo trabalho.

No findar do sol e no raiar do majestoso lusco-fusco lisboeta foi que os Boogarins se apresentaram. Tudo tão mágico que por alguns minutos pensei não estar mesmo no Rock in Rio, mas caí em mim quando um avião quase raspa as nossas cabeças e consegue apenas interromper o concerto. Momento engraçado, vi que rendeu boas fotos. Avião este que poderia ter sido o que trouxe os Boogarins da sua longa tour pelos EUA. Notou-se o semblante mais experiente, ao mesmo tempo mais cansado. Quem de certeza suou um bocado foi o público. As não tantas pessoas que lá estavam entraram no espírito das músicas. Libertaram-se do tempo dos homens. E aposto que gostavam de gritar: "Vou tomar um doce, amor...". Mas não foi o caso, a banda não passou por esta canção. Mas teve "Lucifernandis", do disco passado. Teve também grande parte do Manual, com alongamentos providenciais e intermináveis de cada música. O que elevou os graus de psicadelia do concerto. Concerto magnífico a ser aplaudido e vivido de pé. Poderia ter durado mais, poderia ter ido para o palco principal. Aliás, este era o Palco Principal a sério.

Num festival marcado pela cultura brasileira, os Boogarins disseram, em alto e bom tom, o que o Brasil é capaz de fazer no Rock. (Matheus Maneschy)Dia Três

À saída do metro da Bela Vista, deparamo-nos com um simpático senhor de leste que nos pergunta qual o alinhamento porque mora aqui perto e tem bilhete e não conhece nada do que vai tocar. Valha a verdade, o senhor em questão não estará sozinho - porque ninguém vem ao Rock In Rio pela música, preferindo formar filhas intermináveis em busca de um pufe ou de uma aula grátis de zumba por oposição a apanhar, no Palco Vodafone, os Cave Story a darem um concerto fenomenal, eles que tiveram quiçá o melhor som de todo o festival. Ainda que estivessem alguns resistentes em frente ao palco, foi bastante pouco para uma banda que evoca as guitarras rasgadas dos Television, o espírito de Jonathan Richman e o malfadado futebol. Enfim, n'é?

Os Cave Story tiveram poucos, os Glockenwise idem, eles que vieram apresentar uma vez mais à capital os temas de Heat, o seu terceiro álbum. Tocam a sua melhor canção logo à segunda - "Scumbag" -, expressam o seu amor uns pelos outros e provam que são uma das melhores bandas garage rock da Europa inteira, mas isso já o sabíamos há anos. O que não sabíamos, antes de voltar a subir montes e vales, era que o som em Metz iria prejudicar, em grande escala, o seu regresso a Portugal. Mesmo que os canadianos tenham mostrado o hardcore bojudo que os tornou um nome de referência do rock dos últimos anos, o facto de mal se ouvir a guitarra causou alguma celeuma - nada que prejudicasse o moshpit, o único que vimos formar-se neste festival, pancadaria da grossa onde coabitavam ex-concorrentes de reality shows da TVI e o querido Alex D'Alva. "Wasted" e "Acetate", dois hinos a ter em conta.

Temia-se a chuva, e ela foi aparecendo a espaços. Mas não foi a chuva aquilo que prejudicou o concerto dos Korn, e sim uma alegada falha técnica que provocou sonoras gargalhadas da parte deste escriba e daqueles que o rodeavam, porque o momento, entretanto já dissecado por toda a imprensa, foi a pièce de résistance que faltava a um festival como este. Claro que é pena não ter escutado "Right Now" (I fucking hate you, a história de uma vida), mas valeu pelos olhares indignados, pelo coro de Rock In Rio, vai p'ró caralho e pelas reclamações que se lhe seguiram. Lindo.

Os Hollywood Vampires podem ser muito esforçados, mas para ver bandas de versões mais vale acabar a noite num tasco qualquer do Cais ou Cascais, ainda para mais quando metade do público só tinha interesse em Johnny Depp, que foi impecável a transpôr Hunter S. Thompson para o grande ecrã e até teve ali um ou outro rasgo rock n' roll, ele que se encontra a atravessar um péssimo bocado. Se do interpretar de "20th Century Boy", dos T. Rex, nada há a apontar, o resto foi um desfilar de vergonha alheia e indignação: como é que um tipo como Alice Cooper, não obstante o facto de ser um grande senhor do rock, tem coragem de cantar "My Generation" e dizer com orgulho I hope I die before I get old? Felizmente que a noite terminaria apenas com um DJ set chill da parte de Nightmares On Wax, que espalhou o groove pela tenda electrónica antes do chato do Hudson Mohawke subir ao palco para representar a nova música electrónica urbana, seja lá isso o que for. (PAC)Dia Quatro

Quem diria que no Rock In Rio também se descobrem coisas bonitas? Tínhamos vindo a adiar a escuta dos Mighty Sands, e eis que o grupo vem ao festival mostrar grande mestria nessa coisa maravilhosa que é o rock jangly, ideal para fins de tarde e caipirinha na mão. Isto sim, é música de sunsets, sem tirar o mérito às compilações do Café Del Mar. Calminha e saborosa como se quer. Queremos ouvir mais, muito mais: mandem promos. (PAC)

No intervalo entre os Mighty Sands e a tempestade, o Palco Vodafone foi prematuramente inundado pelos Capitão Fausto. Ali, o vocalista que lembrou-me muito Joseph Mount (vocalista dos Metronomy), fez-me perceber que às vezes é melhor não olhar para o céu em dias de mau tempo. Principalmente quando se tem uma banda desta qualidade à frente. Capitão Fausto Têm Os Dias Contados foi arrebatador naquela tarde, e acredito que seria em muitas outras. De certeza que o público concorda, a julgar pela energia que ali era desperdiçada em cada salto. E de facto, os temas tocados tornaram impossível a inércia de quem ali estava. Muitos jovens a sorrir, a compreenderem que este novo álbum é como um gerador de cenários cool, com banda sonora impecável. Onde os dias são mais cantados que contados.

O Palco EDP Rock Street era, sem dúvidas, o mais brasileiro desta edição. Simoninha, filho do gigante Wilson Simonal, foi quem trouxe mais um generoso pedaço de Brasil para o Rock in Rio. E o público se deu conta disto. A rua do rock rapidamente se encheu de quem sabe bem o que é batuque. E soube mesmo bem ouvir os clássicos de Jorge Ben Jor: o rei do samba sem sambar e o especialista em riso sem motivo. Os temas mais conhecidos eram acompanhados instantaneamente pelo público. Os que não conheciam “Chove, Chuva”, passaram a conhecer naquela hora. Como festa nenhuma se faz sozinho, convidados especiais subiram para completar. O primeiro, um amigo do cantor subiu ao palco para dar um contributo. Depois, o sambista Carlinhos de Jesus mostrou como se dança à sério. E a banda, claro, foi absolutamente incrível. Acompanharam quase todos os artistas deste palco durante o festival, e brilharam sempre. Juntos de Simoninha, me trouxeram de volta um concerto de Jorge Ben que eu nunca tive. (MM)

Assomados pela saída de Matt Mondanile e entrada de Julian Lynch, apenas dois dias antes do concerto no Rock In Rio, os Real Estate trouxeram consigo a chuva; foram poucos aqueles que se posicionaram em frente ao palco, outros tantos recostados nas árvores. E, mesmo esses, estavam munidos de lençóis, sofás, chapéus, o que tivessem à mão, enfim, o que os fizesse esquecer que aquela era uma tarde imprópria a primaveras. Os Real Estate agradeceram o gesto e assinalaram um concerto impecável, entre canções como "Had To Hear" e "It's Real", entre piadas mais ou menos engraçadas sobre o estado do tempo e entre a correria da malta que procurou alcançar uma de muitas capas impermeáveis que foram atiradas do palco, a meio do concerto. Como prenda aos resistentes, apresentaram um tema novo - mas, mais do que isso, deram um concerto "real"; e proporcionaram um daqueles momentos que só acontecem em festivais a sério. (PAC)