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Marching Church
Galeria Zé dos Bois, Lisboa
28-/02/2016


Está a tornar-se cada vez mais difícil separar a arte do artista. Na era da opinião instantânea, um simples erro pode significar uma chaga para a vida; perguntem-no ao Michael Gira, que muito dificilmente se conseguirá safar da rotulagem rapist que lhe foi colocada desde a semana passada (e a qual ele, lamentavelmente, não conseguiu justificar em condições). Perguntem-no ao Phil Anselmo, sendo verdade que a controvérsia racista, no seu caso, já tem muitos anos. Ou então perguntem-no aos Iceage, que de um dia para o outro foram acusados de serem apologistas do fascismo.

A iconografia não ajuda; usarem pins de Burzum, terem tatuagens dos Death In June, este vídeo também não. Mas, e em sua defesa, dois pontos: iconografia fascista ou neonazi enquanto terapia de choque não é nada de novo (até o fantasma do Sid Vicious se riu); se não separarmos a arte do artista, ou se colocarmos a personalidade do artista acima da arte, estamos a deitar ao lixo milhares de obras, de Wagner aos Beatles, do Marquês de Sade a Bukowski. E queremos mesmo viver num mundo onde a segurança e a moral é mais importante que a cultura? Porque essa noção de segurança é, na verdade, a arma suprema do totalitarismo; o irmãozão tomando conta de nós, protegendo-nos do mal, do radical, de triggers vários.

Elogiar os Iceage não é exaltar quaisquer opiniões que possam ter ou ter tido, mas comentar, única e exclusivamente, a sua produção artística - que no caso da banda dinamarquesa até se resume a um álbum excelente (o terceiro), um aceitável (o primeiro) e outro horrendo (o segundo). Quanto ao projecto paralelo de Elias Rønnenfelt, que aqui se apresentou na Galeria Zé dos Bois, só há coisas boas a dizer; as canções são uma espécie de mistura entre a chanson francesa e o black metal (olá, PeteSar), o romance ali detectado é suave e febril e na linha da frente há uma série de groupies que gostariam bem de o levar para casa. A presença em palco de Elias, que agarra o microfone e vai oscilando de um lado a outro, coadjuvado por um excelente Pedro Sousa que, no final, comentou a estranheza que foi ter tocado com os Marching Church, é um cliché - mas um bom cliché. É crooner caído em caos, como o melhor dos Birthday Party. É a faca que pinga o sangue no enorme alguidar com que se constroem as canções dos Marching Church. E é - e isto é importante - o rosto de um frontman que, mais do que nos querer foder, quer que nos fodamos. Hoje em dia, com a ganância de querer agradar, há poucos assim. É pena. É uma arte que se vai perdendo.

(Uma curta nota para a primeira parte, pelos Maranha Boys Band, com David Maranha, Pedro Sousa e Gabriel Ferrandini: primeiro, saudá-los por terem colocado um bando de putos a ouvir noise com algumas das maiores caras de cu que já se viram num concerto; segundo, porque é um regalo ver o baterista ao vivo - há momentos em que pensamos que ele é sobrehumano, e depois vê-mo-lo a suar. Impressionante).

Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
04/03/2016