A noite é quase sempre serena. Com o sol a pôr-se, acalma o rum-rum frenético dos carros, autocarros e eléctricos, e o que resta do dia fica entregue aos que se arrastam rua acima, rua abaixo até a temperatura descer ao ponto de não ser confortável estar lá fora. Aí, nessa hora que mal dura 60 minutos, o silêncio crescente quase que nos deixa ouvir a cidade existir.
William Basinski não trouxe necessariamente o silêncio a Lisboa - nem ao Musicbox, que inundou com pedaços de
Cascade,
The Deluge e um brevíssimo trecho de
Desintegration Loops -, mas os seus loops mareantes em incessante repetição foram catalisadores para nos fazer olhar para dentro e - se acreditarmos muito - ouvir a mudança a acontecer.
© José Silva
Não parece, mas repetições de Basinski são como que um diálogo mudo e carregado de nostálgia. As suas falas são simultaneamente pacientes e evocativas e, dada a forma como se repetem, entranham-se subtilmente no Musicbox que ansiava por ver este meio performer/meio músico, mas totalmente humano. Banhados pelo oceano aliciante e extremamente rico de Basinski, não nos resta se não admirá-lo e à lenta decadência da sua música. Como que por magia, o tempo suspende-se e é-nos dada a mão para assistir de perto aos efeitos da passagem do tempo à nossa volta.
Entregues ao silêncio e à introspecção, talvez estejamos todos a escrever na pele e na memória aquele momento, para a ele voltarmos sempre que quisermos. Talvez estejamos a guardar cada imagem e a absorver cada nota para a sujeitarmos à nossa própria erosão. Ou talvez estejamos apenas rendidos ao embalo, contagiados pela serenidade e pela aura de um quase semi-deus que William Basinski carrega sem dificuldade. Confortáveis neste abraço, não nos resta se não acordar do estado de sublimação e desejar que o eco de Basinski nunca se deteriore definitivamente.
Mas a noite ainda guardava mais espaço ao recolhimento e à emoção. Mr. Herbert Quain, de certa forma um descendente de Basinski, iria assomar ao palco pouco depois. Ao contrário do que alguns poderiam esperar, Mr. Herbert Quain deixou de lado exercícios mais dançáveis para dar espaço ao esplendor ambiental que (também) pontua o seu trabalho - e que há muito ameaçava libertar em palco.
© José Silva
Numa actuação que se podia dividir em duas partes, fica na retina a progressão pensada e habilmente executada pelo produtor da Covilhã. Sem dificuldades, Quain explorou uma dimensão onde pôde abraçar em definitivo um espectro contemplativo que há muito se adivinhava na sua música. Aqui, há espaço para momentos que podiam ser uma homenagem a Basinski (em que os “loops eternos” carregam a música aos ombros) e para explorar densidades e texturas que não lhe ouvíramos antes. Mesmo quando se permitiu a acelerar o seu set (valeu a revisita a “Behind The Curtain”, por exemplo), fê-lo despindo inteligentemente as suas canções, servindo apenas o essencial para nos conquistar. No fim, ficou mais uma prova de que o downtempo também serve para dançar.
© José Silva
No início da noite, coube a Jerome Faria dar o pontapé de saída. E se William Basinski e Mr. Herbert Quain se complementam e permitem traçar algumas linhas de comparação entre ambos, o mesmo não se pode dizer de Jerome Faria – o que numa noite com três actuações nunca pode ser mau. Pese embora o recurso a alguns clichés típicos do glitch, o madeirense oscilou habilmente entre uma espécie de doom electrónico e um ambient subtil e epidérmico. Como se encarnasse duas faces da mesma moeda, Jerome foi ora libertador ora castigador, ora meditativo ora brusco, e tudo isso fez sentido numa noite que ainda tinha tanto para dar.