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forUmusic – Jazz no Fórum Lisboa
Fórum Lisboa, Lisboa
1-4/09/2005


Lisboa ganhou um novo festival de jazz. Promovido pela Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural (EGEAC) e produzido pela distribuidora Trem Azul, este novo evento urbano junta alguns dos mais relevantes músicos nacionais e alguns nomes de referência internacional, sendo dada prioridade, naturalmente, aos artistas ligados à casa-distribuidora. O Fórum Lisboa, espaço sito na distinta Avenida de Roma, foi a sala escolhida para os espectáculos. E se à partida poderíamos questionar a pertinência de um novo evento jazz na capital, no final não foi preciso ninguém responder, a música justificou-se.

O festival foi inaugurado na noite de quinta-feira (primeiro dia de Setembro) com dois grupos portugueses. O primeiro agrupamento a subir ao palco, e contrariamente ao que estava previsto, foi o trio Zé Eduardo Unit. Liderado por Zé Eduardo, histórico contrabaixista nacional, o trio apresentou ao vivo a música do seu disco Jazzar ao Zeca (Clean Feed, 2004). Sem fugir muito da proposta do disco, a revisitação jazzística do cancioneiro do genial José Afonso, revelou-se um concerto seguro. A principal vantagem da música do Zé Eduardo Unit assenta no tratamento efectuado ao nível dos arranjos, que é de tal forma elaborado que transforma os temas de Zeca Afonso em músicas completamente novas. Liderando o grupo, Eduardo aborda superiormente o contrabaixo e faz uma boa homenagem ao cantor da revolução. Jesus Santandreu é um saxofonista (tenor) de bons recursos e capacidade de improvisação e sabe responder com categoria às sugestões de Zé Eduardo. O trio é completado com a bateria Bruno Pedroso, competente no acompanhamento. Para o fim, pelo meio de uma das músicas, Santandreu faz uma curta mas graciosa citação d’”A Internacional” e assim se prova que a liberdade está a passar por aqui, que não é preciso ir para a Atalaia-Amora-Seixal para se fazer a revolução.

O guitarrista Afonso Pais aproveitou também para apresentar ao vivo o seu disco editado pela Cleen Freed em 2004, Terranova. Na companhia do seu trio formado por Carlos Barretto (contrabaixo) e Alexandre Frazão (bateria), dois nomes maiores da cena jazz nacional, Afonso Pais teve no palco do Fórum Lisboa uma prestação agradável e consistente. Num país onde a maioria dos músicos jazz são guitarristas, Afonso Pais arriscava-se a ficar oculto pelo brilho da concorrência, mas com a sua técnica conseguiu impor-se ao lado de nomes como Mário Delgado, André Fernandes ou Pedro Madaleno. Neste espectáculo a qualidade da música de Afonso Pais foi notória, tendo sido ampliada pela favorável contribuição dos acompanhantes: Barretto é um contrabaixista que dispensa apresentações e não hesita em repartir o seu dom em qualquer formação onde colabore; Frazão é uma afinada máquina de ritmo com propensão para bons solos. Nota-se contudo que uma aproximação de Pais a outras correntes e liberdades poderia favorecer e entusiasmar mais. A inclusão de um tema de Ornette Coleman (“Round Trip”) foi uma surpresa boa e o primeiro dia de concertos concluiu-se com graça. Foi pena o pouco público, os intérpretes da noite mereciam mais atenção e mais gente. Na noite de sexta-feira, dia 2, actuaram Filipe Melo trio e o pianista alemão Joachim Kühn, mas o Bodyspace não assistiu a estes concertos.

Na noite de sábado o Fórum Lisboa começou por receber o grupo Wishful Thinking. Este quinteto, apesar de sedeado em Portugal, é constituído por músicos de diversas nacionalidades e faz um som a meio caminho entre o jazz e a improvisação. As linhas de força são marcadas pela dupla de sopros, saxofone tenor (Alípio Carvalho Neto) e trompete (Johannes Krieger), eficazes quando chamados a ligar o botão do improviso. O piano (Alex Maguire) gere bem os espaços, é aqui que a música do grupo encontra o centro e a exuberância das reacções do pianista não afecta a precisão da música. O baixo eléctrico (Ricardo Freitas) imprime uma pulsação forte, que a bateria (Rui Gonçalves) completa com ritmo enérgico. Música física, forte e viçosa. Foi pena o volume de som demasiado baixo do saxofone, que por vezes ficava abafado pelo restante grupo. Dispensava-se também a tentativa de humor duvidoso mas, quanto à música, que é o que interessa, o grupo deu boas pistas. Fica a curiosidade pelo disco com edição prometida para o próximo ano.

O concerto do Don Byron’s Ivey-Divey Trio foi soberbo. Don Byron chefiou a música do grupo, trabalhando de modo eloquente o clarinete ou saxofone tenor, alternadamente. Jason Moran, um dos pianistas mais talentosos do nosso tempo, foi a companhia ideal para Byron. Billy Hart faz parte da história do jazz (sideman de Miles Davis, Stan Getz, Jimmy Smith ou Pharoah Sanders, por exemplo) e é sempre um prazer ouvi-lo. A junção destes três músicos resultou num brilhante jazz de pendor clássico (mas premente de actualidade) que é o mesmo que dizer música cristalina, límpida, cintilante – e nunca, nunca é demais usar a palavra “classe”, quando falamos deste trio. Um dos melhores momentos da noite ocorreu quando Byron e Moran dialogaram em duo, instante belíssimo. A recriação de “Giant Steps” foi outro momento alto de um concerto que ficará na memória dos melhores momentos deste ano.

Os Lisbon Improvisation Players (LIP) são um grupo mutante chefiado por Rodrigo Amado e desta vez entraram em palco quarto músicos que habitualmente se expõem em áreas afastadas da improvisação livre mas que se encontraram neste projecto para tratar de dar corpo a essa tal coisa da música improvisada. E a verdade é que o quarteto alcançou resultados meritórios. O líder do grupo é o saxofonista (alto, tenor e barítono) Amado que, com assinalável mestria, domina o som para conduzir os LIP nas águas da invenção instantânea de música. João Moreira é um extraordinário trompetista, tradicionalmente mais próximo do jazz ordeiro, mas neste grupo evita truques clássicos para produzir efeitos e comunicar em equipa na criação de novos sons. Pedro Gonçalves é um eclético contrabaixista (de Dead Combo a Manuel Mota, entre outros) que se encaixa neste quarteto com cadência e sentido de desafio. Bruno Pedroso completa o quadro gerindo com autoridade a bateria, embora por vezes respondendo com alguma demora às provocações do grupo. Foram estes os músicos que criaram música fresca, arriscada e (quase sempre) compensadora. Foi uma óptima introdução ao concerto que havia de se seguir.

Todas as pessoas que se deslocaram ao Fórum Lisboa estavam lá por apenas um motivo: John Coltrane. Infelizmente Coltrane não apareceu, mas Sonny Fortune e Rashied Ali sabiam o que o povo queria. Ali colaborou com o mestre na sua última fase e era essa memória viva que todos queriam provar. Sonny Fortune tocou uma única vez com Trane, mas tal bastou para que este fosse a sua influência maior. E eis que os senhores sexagenários abriram as portas do tempo, desfilando com soberba categoria a melodia de “Impressions” (esse mesmo, tema incendiário de John Coltrane). Transformando o saxofone num propagador de labaredas, Fortune atacou a melodia com toda a energia que se pode guardar dentro do peito. Rashied Ali, de t-shirt com Miles Davis estampado, contra-atacava na bateria e abria alas para os voos de Sonny Fortune. E por essa noite fora, uma noite quase-perfeita, houve apenas esse único tema. As voltas e curvas, desvios e contra-ataques de Fortune/Ali, sempre urgentes, não deram espaço para mais. Foi uma interpretação perfeita de um tema perfeito de um génio perfeito. No final, apenas uma certeza: para festivais com música desta casta há sempre lugar.

Nuno Catarino
nunocatarino@gmail.com
01/09/2005