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Noites Ritual Rock 2005
Jardins do Palácio de Cristal, Porto
26-27/08/2005


Eis que chegou Agosto, um mês depois do primeiro grande festival de Verão (Vilar de Mouros) ter arrancado. E já vão 14 anos em que o final de Agosto é sinónimo de Noites Ritual Rock, um certame dedicado exclusivamente à música feita em Portugal. À primeira vista, uma divisão: um palco com nomes mais ou menos confirmados/consagrados/conhecidos (escolher a, b ou c) e um outro para bandas cujos nomes não são ainda tão sonantes, ou porque pertencem a um circuito mais independente, ou porque ainda estão a dar os primeiros passos. Mas numa visão mais atenta e pormenorizada, era possível perceber outra divisão no que diz respeito ao palco principal: uma primeira noite de sons mais dançáveis (música electrónica, de cariz mais ou menos poético, ou o funk) e uma segunda dedicada às guitarras e ao rock com mais ou menos roll.

Mas cumprem-se os rituais, então. O ritual de imaginar ou saber que o palco (digamos) secundário pode ser o trampolim para o palco principal num futuro próximo - para isso é preciso perceber, numa jogada de quase totoloto, aqueles que são merecedores de tal promoção. O ritual curioso de ver toda a gente correr de um lado para o outro no final das actuações, procurando não perder um segundo que seja do que se está a passar em ambos os palcos.
Cabia a Complicado, o projecto de Miguel Gomes dos Mindelo (também conhecido por acompanhar Francisco Silva/Old Jerusalem ou os Neon Road), abrir a noite de sexta-feira para mais uma apresentação de Haunted, o disco de estreia editado pela Bor Land. Cabia, mas de Complicado nada se ouviu, uma vez que o concerto foi cancelado, reduzindo para duas as propostas do selo nortenho. Com efeito, foi mesmo no palco principal que tudo começou, com os lisboetas Wordsong, o projecto responsável por musicar os poemas de Al Berto e, mais recentemente, de Fernando Pessoa, independentemente dos heterónimos (houve até uma passagem pelo poema “Opiário”). Mas pode-se mesmo dizer que o início do concerto foi algo complicado, uma vez que questões técnicas causaram problemas logo ao começar. Uma vez começado o concerto, tornou-se claro – se ainda não tinha ficado com o disco – que as criações ou recriações dos Wordsong e a mistura que dali resulta (as palavras inseridas numa envolvência electrónica) são tão arriscadas como uma manifestação exagerada de euforia por ruas de Budapeste. Admira-se a coragem (talvez os dois mundos não cheguem a colidir), mas não é de todo certo que a aliança seja saudável e pacífica. Por outro lado, as projecções de ruas velhas, de homens e de solidão jogam na perfeição com o imaginário de qualquer um dos poetas. Tanto quanto se sabe, então, os Wordsong planeiam editar um novo disco que irá revisitar os eternos poemas de Pessoa. E foi precisamente por aí que a primeira parte do concerto se construiu. Depois veio Al Berto, “Le Plus Grande Calligraphe” e outros grandes poemas (e aqui, a voz de Pedro d'Orey é perfeita na interpretação dos textos), num concerto feito de apenas um ou outro bom momento. Um concerto que valeu sobretudo pelo texto (muito mais do que pela música em si), pela interpretação, pelo elogio da palavra.

Alla Polacca © Carlos Oliveira

Pouco depois, e um pouco mais abaixo, as tais duas propostas da Bor Land, os Ölga e os Alla Polacca, duas bandas em situações bastante diferentes no que toca a edições. Os primeiros, formados em 2001, lançaram em 2005 What Is e têm vindo a promover aquele que é o sucessor do EP de 2004. Apetece dizer que os Ölga estão mais coesos e a pedir desculpa pelo lugar-comum. Apetece também dizer que os Ölga parecem cada vez melhores ao vivo e que “Money” é provavelmente o melhor tema que alguma vez escreveram. Os teclados marcam enorme e fundamental surpresa, o krautrock, os samples de discursos e a percussão (por vezes tribal) também (as duas baterias provam isso mesmo). Há até o cheiro de música feita noutros locais que não a Europa. Mas é com as explorações sónicas que os Ölga impressionam mais. Quanto aos Alla Polacca, banda que provavelmente editará novo disco em 2006, mostraram-se bem superiores ao concerto que deram há relativamente pouco tempo no Passos Manuel (com Complicado na primeira parte) e por tornar ainda mais claro que não se vão limitar a copiar o caminho percorrido no disco de estreia, o split com os Stowaways (outra banda que planeia editar novo disco em 2006, desta vez pela Transformadores). Isto é, o caminho dos Alla Polacca agora é outro. Um caminho peculiar, um caminho arriscado mas aparentemente mais próprio. Impressões para confirmar brevemente num próximo disco. Por enquanto, como no concerto, há temas mais ou menos antigos, inversões de marcha e mudanças de faixa repentinas.

Ölga © Carlos Oliveira

Para fechar a noite, senhoras e senhores, o funk (e não só), pelas mãos dos Cool Hipnoise, num concerto em jeito de celebração dos 10 anos de carreira, assinalados com a compilação Groove Junkies 1995 > 2005, editada recentemente. E até se pode dizer que o concerto que os Cool Hipnoise deram nas Noites Ritual Rock foi um concerto de promoção ao “best of”. “Ponto Sem Retorno”, “Funk é Mem'Bom”, “Groove Junkie”, a curiosa versão de “Come as You Are” dos Nirvana e o inédito “Brother Joe”, o single do best of, uma canção demarcadamente anti-Bush, foram temas essenciais num alinhamento que teve ainda em “Catinga” e numa versão de “Everybody's Got To Learn Sometime” dos Korgis alguns dos momentos mais curiosos e surpreendentes. Mas surpresa, surpresa, foi mesmo a entrada em palco de Ace e Presto dos Mind da Gap, lá para perto do fim. Não devido a bons contributos musicais, entenda-se, mas porque a colaboração da dupla teve resultados tímidos, pelo que nunca se percebeu muito bem o que foram para lá fazer.

Cool Hipnoise © Carlos Oliveira
Já todos sabem que Manuel Cruz tem uma legião de fãs que o acompanha seja com os Pluto, seja com os Supernada, seja na tenda de imprensa onde até chovem pedidos de casamento por parte de fãs masculinos. Piropos à parte, apetece dizer que, esteticamente falando, os Supernada ficam mais ou menos a meio caminho entre os Ornatos Violeta e os Pluto. O que é o mesmo que dizer que lá pelo meio, o rock-funk ainda sobrevive. O que sobrevive ainda é a pose sem T-shirt do vocalista da banda que lançou uma vez um disco chamado Cão. Canções como “Cisma” e “O Preço das Uvas” deixam a vontade que os Supernada editem um primeiro disco de originais em breve para ver até que ponto é que a divisão de Manuel Cruz em mil e um projectos dará bons frutos. Os fãs parecem não duvidar do sucesso dos resultados que se esperam para breve. Aproveitando o motivo da família, o disco de estreia de Nuno Prata também não cairia nada mal nos próximos tempos.

Supernada © Carlos Oliveira

E agora algo completamente diferente, uma viagem do Porto a Coimbra na procura do rock ‘n’ roll que por lá se tem feito nos últimos tempos. Uma viagem que trouxe à cidade invicta os seus dois maiores representantes, duas bandas que - como todos deviam saber - nasceram das cinzas dos Tédio Boys. De um lado Kaló, do outro Paulo Furtado, e a boa notícia é que ambos podiam sair vencedores e nenhum sairia vencido. Os Bunnyranch continuam a apresentar as malhas de Trying To Lose, um disco editado em 2004. Malhas como “Liar Alone”, “Intelligent Freak” (dedicada como é habitual ao Legendary, ou seja, ao amigo Paulo Furtado). A chuva apareceu e ainda levou com ela alguns menos corajosos (um deles dizia, conformado: “a gente sofre pelo rock, sofre pelo rock mas não tanto... só um bocadinho”) mas foram muitos os que ficaram. E as razões são muitas. Os espasmos de Kaló, o seu estilo, a forma como toca bateria em pé e canta ao mesmo tempo, a forma como fala no meio das canções como se procurasse alguma verdade ainda por dizer, ou os teclados ardentes de Filipe Costa que sublinham o efeito rock ‘n’ roll. E se estas razões não fossem ainda suficientes, há uma passagem por um tema original de Paul Revere and The Raiders e “Tetas da Alienação”, uma versão do tema dos Mão Morta que fará parte de uma compilação de tributo à banda liderada por Adolfo Luxúria Canibal.

Bunnyranch © Carlos Oliveira

Sabia-se de antemão que os Wraygunn vinham às Noites Ritual Rock no Porto com um intuito especial: gravar alguns temas para serem incluídos na edição inglesa de Eclesiastes 1.11, prevista para depois do Verão. Sabe-se igualmente que os Wraygunn há muito – está bem, está bem, mais recentemente - que deixaram de ser apenas uma banda a viver em Portugal para passarem a actuar na França e na Itália. Sabe-se até que no próximo Outono, os Wraygunn vão voltar a França para uma digressão de 20 datas, por isso é mais do que certo que o futuro é risonho para Paulo Furtado e os seus comparsas. Muito mais quando se tem um conjunto de canções como as que os Wraygunn têm em Eclesiastes 1.11: temas como “Soul City”, “Drunk or Stoned” ou “Keep on Prayin'” têm potencial para fazer furor em Portugal, na Europa e em qualquer local do mundo. Nos ecrãs, Raquel Ralha discutia taco a taco a audiência e isso explica-se por vários motivos: o mais forte deles é que Raquel Ralha é sem sombra de dúvidas o actual número 1 do top de sex symbols do rock português. O facto de tocar cowbell num vestido preto e branco, de soltar os já famosos gritinhos alarmados em “Drink or Stoned”, ou cantar sensualmente em “There But For The Grace Of God Go I” são apenas mais alguns factores a seu favor.

Wraygunn © Carlos Oliveira

Mas no final é obviamente Paulo Furtado que brilha mais, seja a despejar uma garrafa de água pela cabeça abaixo enquanto afirmava “vocês estão molhados e calmos, eu estou molhado e não estou calmo”, seja a fornicar com a maquineta que geme do costume ou com a câmara de filmar, seja a misturar-se com o público, seja a subir pela estrutura metálica que envolve o palco para mais um pouco de fornicanço arriscado. Escusado será dizer que a maior parte destas aventuras foram levadas a cabo durante “All Night Long”, canção que é o verdadeiro elogio do amor pela noite dentro: “Gonna love that woman/ Gonna love that woman/ Baby all night long/ Baby all night long/ I'm gonna do that girl/ I'm gonna do that girl/ Baby all night long/ Baby all night long”. E obviamente não faltaram canções como “She's a Speed Freak” e “How Long, How Long?”, solos de guitarra de joelhos no chão e outras acrobacias. É verdade que este não foi o melhor concerto de sempre dos Wraygunn, mas o mediano dos conimbricenses continua a ser muito superior aos bons momentos da maior parte das bandas portuguesas. E se continuam assim ainda os vamos perder para o resto da Europa.

Wraygunn © Carlos Oliveira

André Gomes
andregomes@bodyspace.net
26/08/2005