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Lisb/on Jardim Sonoro
Parque Eduardo VII, Lisboa
6-7/09/2014


Há qualquer coisa de surreal e pecaminoso em festejar desavergonhadamente às 3 da tarde como se fossem 3 da manhã, mas há motivos maiores que a vida. O deste fim-de-semana foi o Lisb/On, o mais jovem e promissor festival da cidade de Lisboa e, porque não, o mais ambicioso.

O cartaz estelar justificava a ambição. O dia de estreia estava abençoado por Dâm-Funk, Moodymann, Isolée e um Carl Craig que nem a chuva conseguiu abrandar. Depois, um recinto que além de (re)aproveitar um espaço morto da cidade, conseguiu esconder-se o suficiente do bulício urbano para nos levar a questionar se estaríamos mesmo no centro de Lisboa. Só faltou mais sol.

Ainda antes da noite cair, já o parque Eduardo VII parecia mais um jardim privado e menos um espaço público. A pouca afluência de público não deve ter ajudado nas contas da organização, mas contribuiu para que um certo ambiente de familiaridade se instalasse sem se dar por ele. E esse ambiente, por seu lado, levou a que mil e tal pessoas terminassem – começassem – a noite a comungar sob a influência desse controlador de dancefloors que é Carl Craig. A noite foi dele não só pela sua genialidade e total falta de piedade na hora de manetear o público – primeiro a aquecer gentilmente, próximo do soul e do funk, depois verdadeiramente demoníaco, com um set que percorreu vários territórios do techno –, mas também porque toda a gente se entregou sem a ele, mesmo quando o PA estava demasiado alto e o cansaço e o álcool se misturavam para criar uma bomba implacável.

Mas a euforia generalizada experimentou-se ainda mais cedo, com Moodyman claro, e também com Dâm Funk. Sendo por esta altura ponto assente que a colecção de discos do Moodymann é também a melhor colecção de discos do mundo – e a mais cool e a mais groovada -, convém dizer que também é ponto assente que Dâm Funk tem que ser o gajo mais descontraído do planeta. Dizem-no as malhas, puro sexo a acontecer em palco, com teclados tão luxuriantes que mesmo quando ele e a banda flirtam perigosamente com o funk mais puro, nunca compromentem em acariciar-nos o corpo e a mente, num embalo sensual e psicadélico. E diz-nos também o próprio Dâm Funk, não por palavras, mas pelo sorriso em misto de contentamento e respeito com que subiu ao palco para dançar ao som de Moodymann.

Por isso sim, com Moodymann e a sua maravilhosa colecção de discos a boa onda agravou-se no parque e trouxe com ela uma dose generosa (e generalizada) de amor. Tal como Mary Poppins e a sua mala mágica, Kenny Dixon Jr. tem sempre à mão aquela rodela mágica, ideal e certeira para nos livrar de qualquer maleita. Duas horas com Isaac Hayes, Parliament, Lil Louis, Led Zepellin e a talking box de Peter Frampton, significam duas horas de uma aula gratuita por um dos grandes. A sabedoria de Moodymann sente-se na escolha certeira de temas, que tocam tanto no acid como na soul e no funk, mas acima de tudo na fluidez quase orgânica com que os temas se sucedem, sem nunca deixar cair os corpos dançantes diante de si. Fica a vénia para quem a merece.

A noite e a chuva caíam quando Isolée subia a palco e a expectativa para receber Carl Craig era palpável. Mas o cenário não era a única coisa a mudar. Talvez pela chuva miudinha e intromissa ou pela mudança abrupta para o minimal inventivo de Isolée – bastante mais frio e menos convidativo à libertação e exultação que o set de Moodymann -, os ânimos pareciam esfriar e o Burger King ali ao lado era o abrigo perfeito para recarregar baterias até chegar a hora de ir para casa – ou para uma das mil festas espalhadas pela cidade. Fosse como fosse, o dia estava ganho.Sem warm-ups no caminho e vencidos pela dor no dia anterior, foi fácil chegar a tempo de torrar por você no parque. Os Thunder & Co., inofensivos e a tocar para praticamente ninguém, justificavam porque é que nem toda a gente consegue fazer boa electrónica e derivados e deixavam antever um PA bem mais brando que no dia anterior. A cabeça agradece e os Sensible Soccers também. Concerto sólido, com direito a dois temas novos – um tem uma irresistível ginga africana e é um tema escrito posteriormente à edição de 8, o outro é um crescendo épico que termina num banho de guitarras, quase drone, e que, segundo explicaram o Hugo e o Né, foi escrito para o festival de curtas de Vila do Conde. Além disso, ainda fomos agraciados com a presença de Sofia Aparício a dançar ao som de “Sofrendo por Você” como se fossem os anos 90 outra vez, e de repente este já é o melhor domingo do mundo. Mucho amor para os Sensible Soccers também, que à oitava vez continuam a ser uma das melhores bandas do mundo e, como qualquer melhor do mundo, mostram que ainda há margem para progredir.

Ainda que fosse o segundo dia naquele imenso espaço verde, o primeira dia a dar tudo pela festa tinha deixado uns quantos truques por revelar, como o inacreditável número de puffs à espera de ser resgatado para a sombra, a ausência sempre bem-vinda de marcas impositivas e a presença de um público raro de tão interessado, que prefere ignorar as exasperantes selfies e quejandos em troca da música. Agradece-se a boa disposição generalizada e a as páginas de um livro de Henry Miller onde se lia “refegos de cona” e “incandescer os ovários” assim de uma assentada. De repente, aquele jardim já é o melhor de sempre.

Valha-nos então Henry Miller, que A Vida Secreta das Máquinas não chegou a valer-nos o que se esperava. Foi o primeiro momento verdadeiramente contemplativo do festival e o público percebeu isso, sentando-se no relvado quase de imediato. Mas a peça, inspirada nas máquinas, parecia incapaz de viver à altura da sua premissa – ou das expectativas -, embora não tenha falhado em mostrar um Rodrigo Leão atento e disposto a abraçar uma identidade que à partida não seria a sua. Embora não tenha sido memorável, valeu pela descontracção que arrebatadora, tal como se queria para um festival diurno.

Se de Tiger & Woods e Mirror People pouco há a dizer além de que agraciaram com competência e animação q.b. a transição entre concertos, de Roy Ayers há mais para dizer do que aquilo que caberá nestas linhas. Faça-se um esforço de contenção, alinhem-se as palavras génio, inacreditável e vitalidade e esta reportagem poderia ficar por aqui. Não há melhor maneira de perceber Roy Ayers senão mergulhando de cabeça e sem olhar para trás no seu baile funk e soul. Por aquilo que se viu no domingo à noite, entre os solos frenéticos de vibrafone e os sorrisos sinceros que lançou para a plateia, ninguém diria que Ayers já conta 73 anos. Ao seu lado, uma banda bem entrosada e capaz de jammar durante largos minutos sem atropeços ou tropeções, assinou com o septuagenário um atestado de vitalidade irrevogável no Lisb/on.

Greg Wilson, lenda viva dos pratos e das bobines, foi o convocado para encerrar a primeira edição de um festival que estava ganho há mais de 24 horas. Com um flow que apelou acima de tudo à descompressão, Wilson moveu-se por terrenos orelhudos e surpreendentemente lentos, resgatando ao baú a sempre deliciosa “Show me Love”, a pegajosa “Everyday” dos Fleetwood Mac, “Rock With You” de Michael Jackson e até “Whole Lotta Love” dos inevitáveis Led Zeppelin. Se Wilson (como o Lisb/on) pecou por alguma coisa, foi só por ser demasiado curto e não acontecer todas as semanas.

António M. Silva
ant.matos.silva@gmail.com
11/09/2014