Quem são eles? Que som é este? E porquê só uma data nesta auspiciosa reunião, com um conjunto de músicos empenhados em demonstrar que a curta carreira dos Mler Ife Dada conseguiu, com dois LPs, desconstruir e revolucionar a pop portuguesa e mesmo assim resistir à erosão do tempo? Não é fácil descrever o que se sente ao ser confrontado pela força bruta que os Mler Ife Dada apresentam em palco, levando quem ouve e quem vê numa viagem pelos quatro cantos do mundo, com momentos ora mais dramáticos, ora mais ligeiros, sempre com uma consistência e nivel de musicalidade intocáveis e louváveis.
© José Silva
Apesar do público maioritariamente saudosista (leia – se “da altura”), Nuno Rebelo e Anabela Duarte, o núcleo criativo dos Mler Ife Dada, não se prestaram a lugares fáceis (apesar do bis da inevitável Zuvi Zeva Novi no encore). Prova disso mesmo foram os novos arranjos e a instrumentação actualizada dos temas mais marcantes da banda, como que a mostrar que a sua música continua tao fresca como há 30 anos atrás e, arrisco até dizer, mais organica, cheia, e livre das lacunas estéticas que a produção musical dos anos 80 (o uso e abuso do digital e dos sintetizadores) imprimia à música dos Mler Ife Dada.
© José Silva
Apesar da ocasional viagem no tempo até essa época, com temas reminescentes de uns clássicos Talking Heads como “Dance Music” ou “Musica do Homem que Anda” (com uma mensagem perfeitamente contemporânea: porque é que ouvimos música de dança se estamos a ouvir rádio? E não somos muitos de nós, homens que se “encasulam”?), a viagem faz-se pelos quatro cantos do mundo e deixam perceber que, muito antes do rótulo de world music, já os Mler Ife Dada se deixavam tocar por África, pelo Oriente ou por soturnas guitarras do Ocidente mais profundo - sempre com a portugalidade de quem deu novos mundos ao mundo (cliché, mas verdade). Nao só se gingou com “Pandra – Bomba”, mas também se avistaram faraós com “À Sombra desta Piramide” (que deixou a nu a estreita ligação da banda às artes plásticas, através de uma projecção feita à medida das cancoes), e até um gosto a saké em “Choro do Vento e das Nuvens”.
Mas desengane-se quem vê os Mler Ife Dada como mero ‘pop act’. Houve tempo para deambulações mais experimentais, dando a Anabela Duarte o espaco necessário para mostrar que a sua voz é menos uma lembranca de Kate Bush e mais um instrumento, ao jeito de Meredith Monk. A ajudar à festa, houve um trio de cordas e um trio de sopros de metal, que humanizaram os arranjos concretizados em disco com sintetizadores. Com a ajuda de momentos mais introspectivos como “Alfama”, que vai buscar as tais guitarras soturnas do Ocidente profundo (que afinal mais não são que um baixo pejadinho de reverb, a atirar o bairro lisboeta para o meio de Paris, Texas), estas duas velozes horas culminam no emocionante/emotivo novo arranjo de Valete (de Copas), capaz de arrepiar até o mais alheado da obra dos Mler Ife Dada.
© José Silva
Para o encore estava guardada uma versão bem desvairada de “Ele e Ela”, clássico de Madalena Iglésias, com momentos ruidosos em jeito de descontrução de um tema bem familiar da ‘música ligeira portuguesa’. Nova voltinha, nova surpresa e a delico-doce “Loosing Yelav” surge que nem canção de embalar no horizonte. Era um quase fim, que só não aconteceu porque havia mesmo que regressar ao querido (mas “fácil”) “Zuvi Zeva Novi”. Sem mossa, porque esta é daquelas canções que faz o publico, já completamente entregue, levantar-se e comecar uma autentica festa swing que podia estar a acontecer num Cotton Club nos anos 30.
Contas feitas, o tempo estimou muito bem os Mler Ife Dada e os próprios nao se iludem, nem dão ilusões do porquê da sua reuniao. Até o nome deste concerto, “Pintar Um Vai Vem”, aponta para uma vaga ideia de efemeridade que, atente-se, só deve ser tida em conta para este concerto. Porque a sua obra, o seu legado, está de muito boa saúde e com uma vitalidade tal que deveria ser mais vezes apontada como um exemplo a seguir para a juventude que se diz cada vez mais eclética (hipster much?). Ele há coisas que fascinam.